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Sanear sem urbanização é frágil e põe favelas em risco, dizem especialistas

Mais de 40% das crianças brasileiras de zero a seis anos habitavam em 2017 casas com ao menos uma inadequação de saneamento, seja ausência de esgoto, abastecimento de água ou coleta de lixo - Reuters
Mais de 40% das crianças brasileiras de zero a seis anos habitavam em 2017 casas com ao menos uma inadequação de saneamento, seja ausência de esgoto, abastecimento de água ou coleta de lixo Imagem: Reuters

Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

13/07/2020 04h00

O Senado aprovou, no último dia 24, um novo marco legal de saneamento básico, que ainda depende da sanção do presidente Jair Bolsonaro para virar lei. O projeto aprovado prevê universalizar o saneamento básico no país até 31 de dezembro 2033. A meta é atingir cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento de esgoto. A previsão de investimentos é de até R$ 700 bilhões.

Hoje, os números escancaram a insuficiência: metade da população (mais de 100 milhões de pessoas) não tem acesso a sistema de esgoto, enquanto 16% (quase 35 milhões) não têm acesso a água tratada, segundo dados de 2018 do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento). Só 6% das cidades são atendidas pela iniciativa privada. Nas outras 94%, o serviço é feito por companhias estaduais ou municipais, com ajuda do governo federal.

A proposta, segundo especialistas ouvidos pelo UOL, é incompleta e vai tapar o sol com a peneira ao ignorar a falta de urbanização que ainda é grande no país. Segundo um levantamento feito pela Embrapa, em 2017, as áreas consideradas urbanas no Brasil representam menos de 1% do território nacional (0,63%) e concentram 160 milhões de pessoas, ou seja, 84,3% da população brasileira.

Para a professora adjunta do Instituto das Cidades da Unifesp Jaqueline Bória Fernandez, a ausência de políticas públicas urbanísticas em comunidades é uma realidade. Devido a isso, ela explica, a chegada de água e tratamento de esgoto nesses lugares é, muitas vezes, impraticável.

"Já estive em comunidades estruturadas em vielas da espessura de um corredor, porque as próprias pessoas fazem a construção ali, não tem urbanização. Quando uma empresa responsável por levar água chega a um lugar como esse, a primeira coisa que ela pergunta é 'quem vai fazer a rua, abrir o espaço? Aqui, não cabe nem a máquina para colocar a tubulação'. Já presenciei essa cena ao tentar levar água para uma comunidade em São Paulo. Se vi isso na cidade mais urbanizada do país, imagine o que não acontece em lugares mais afastados daqui?", questiona.

Os mais recentes dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento Social são referentes ao ano de 2015 e mostram que, das concentrações urbanas mapeadas, a cidade de São Paulo tem a maior área urbanizada, seguida por Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Os três municípios que apresentam menos urbanização são Caruaru (PE), Juazeiro do Norte (CE) e Vitória da Conquista (BA).

Líderes comunitários criticam projeto

Para embasar o argumento da pesquisadora, o UOL conversou com líderes comunitários do G10 favelas, bloco de líderes e empreendedores de impacto social. Na linha de frente de atuação em Jurunas, comunidade em Belém, no Pará, Renato Rosas afirma que é necessário um projeto de urbanização urgente por ali. E detalha:

"Há dez anos, foi concluído um projeto de construção de orla e de macrodrenagem em uma parte de Jurunas. Ainda assim, a maior parte da comunidade ainda vive uma situação muito precária: onde a orla não chegou, há casas de palafita sobre o rio e uma vala em frente —e tem gente que mora bem em cima da vala, onde são descartados resíduos e o esgoto", explica.

"Existe um projeto de macrodrenagem parado. Para trazer saneamento para essas pessoas, é preciso mais do que só um projeto: tem que fazer uma ponte, tirar essas pessoas dos rios e transferi-las para casas de alvenaria ou de madeira —vira e mexe tem bicho, cobra entrando nessas casas. Viver em casa de palafita é tentar conseguir um cano que leve a água e rezar para que a viga que sustenta a residência não apodreça na lama. Não existe a possibilidade de sanear de outra forma", afirma.

Segundo Rosas, as condições ruins de higiene que permeiam Jurunas fizeram com que a comunidade presenciasse uma explosão de casos de coronavírus. Na tentativa de combater o problema de saúde pública, ele criou uma vaquinha. "As pessoas precisam comer e, para ganhar dinheiro, se amontoam numa feira tipo a que a gente viu na China. Matam bicho ali mesmo, sangue escorrendo, não tem condição alguma de higiene. Tanto que quando começaram as notícias a respeito do coronavírus, teve gente que achou que essa doença iria brotar da feira. Ela ficou fechada por três dias, todo mundo com medo. Mas, é isso, as pessoas precisam trabalhar, precisam se alimentar", conta.

Rosas explica, ainda, que o rio precisa ser rio, e não moradia. "É impossível fazer aqui em Jurunas qualquer projeto de saneamento sem pensar em urbanizar e remanejar as famílias; é necessário criar prédios de habitação popular, colocar esse povo para morar em segurança. E aí criar uma orla e um projeto de tratamento de água e esgoto".

Favelas no Rio enfrentam questão geográfica

À frente da liderança comunitária carioca, Reginaldo Lima vê a medida como mais uma ação excludente, uma vez que é pensada por pessoas que não vivem a realidade das favelas. "Uma política pública feita dessa maneira, aos socos, só para dar uma resposta meramente política, é muito preocupante. Como sempre, quem vai ser prejudicado? Os pobres, as camadas menos desenvolvidas economicamente, as favelas", diz.

"A imensa maioria das comunidades no Brasil ainda carece de água encanada e tratamento de esgoto. Como debater saneamento em uma configuração urbana de extrema complexidade, como são as favelas do Rio de Janeiro, por exemplo? Essa discussão não existe sem antes serem resolvidas questões como pavimentação, reorganização de becos e vielas, acessibilidade, captação de esgoto e, aí sim, como a água pode chegar de maneira salutar", afirma.

Lima explica que o Rio de Janeiro é horizontal e que, ao pensar no aspecto de urbanismo quando se trata, por exemplo, da captação de águas pluviais, "vivemos um horizonte de deformidade e deficiência". "É só pegar os períodos com mais chuvas do ano e observar onde é que a desgraça acontece. É na favela, claro. E óbvio que é um problema de urbanismo", diz.

"Aqui, a gente encontra favelas com um perene desenvolvimento. Ao observar a configuração urbana de uma comunidade no início da semana e, depois, voltar a analisá-la no fim da mesma semana, será possível ver que ela sofreu uma alteração de configuração. Todo dia, alguém levanta uma parede, puxa uma laje, porque a família cresce, os filhos se casam. É uma nova família que aumenta a necessidade de água encanada e esgoto, e isso acontece paralelamente às mudanças na estrutura urbana", explica.

"As políticas para o pobre são feitas com desleixo: debater água sem debater urbanização, desenvolver engenharia local e transformar a arquitetura da favela é fracassar; é, mais uma vez, não debater as endemias que já existem —principalmente quando se trata de saúde pública. Vivemos uma pandemia de coronavírus, mas nas favelas do Rio de Janeiro as pessoas morrem o tempo todo por dengue, leptospirose, meningite viral, tuberculose porque o esgoto está exposto. É um problema estrutural".

Projeto frágil

Empreendedora Social do Território do Bem, no Espírito Santo, Denise Biscotto compara a fragilidade do novo marco regulatório aos aprovados anteriormente. "Esse novo marco contempla a privatização de pontos importantes, e isso me deixa receosa. Além disso, há questões muito profundas que precisam ser resolvidas antes disso para que esse marco alcance, de fato, pessoas pobres. Falta regularização fundiária na maioria das favelas, isso é impeditivo de trabalho', afirma.

Ela explica que, no Território do Bem, comunidade em Vitória, teoricamente o saneamento já chegou. "Mas o que a gente vê são pessoas de extrema pobreza que não conseguem ligar o esgoto da pia na rede. Entende a profundidade do problema? É para inglês ver esse marco? É preciso sempre dar dois passos para trás para entender as particularidades das regiões. Sem olhar para isso, a gente volta para um problema que é contínuo: quem perde é o pobre".

Solução eficaz e sustentável

De acordo com o professor de Engenharia Civil da Ibmec do Rio de Janeiro, Roberto Lucas Junior, as comunidades deveriam ter sido colocadas dentro do projeto do novo marco, com todas as suas especificidades. "A maioria das favelas no Rio, por exemplo, está nos morros, o que prejudica muito a chegada com tubulação, água e drenagem. Por isso, acontecem tantos deslizamentos", explica.

"Junto às edificações, tem o esgoto, que não é recolhido corretamente e vai para rios e lagoas. A solução que vejo para essas questões, antes de qualquer mudança na lei do saneamento, é urbanizar esses espaços e pensar em políticas sustentáveis para o saneamento. Se forem locais perigosos, com risco de desabamento, é preciso realocar a população e dando infraestrutura para que ela viva em segurança. E, então, pensar na drenagem da água e no reúso de água da chuva, de reaproveitamento de dejetos e até em pequenos sistemas de tratamento sustentável em casa. Os custos seriam menores e o projeto, de fato, daria assistência a quem mais precisa", diz.