'Estava jogando sinuca e me chamaram para salvar uma baleia no rio Tapajós'
Era noite, véspera de feriado, quando o veterinário Milton Marcondes recebeu uma ligação inusitada. O pedido de ajuda para tentar salvar uma baleia no meio do rio Tapajós, no Pará, veio com um susto.
Como um animal, de água salgada, nadou em rio por mais de mil quilômetros?
Dali em diante, Milton viveu uma epopeia. Foram cerca de dez dias entre chegar à Amazônia, buscar a baleia nos arredores da comunidade de Piquiatuba, medicá-la e perder o animal.
Ao UOL, o especialista do Instituto Baleia Jubarte lembrou o encontro improvável com uma baleia minke nas águas turvas do Tapajós, em 2007.
'Vou ter de parar de jogar'
"Era dia 14 de novembro de 2007, à noite, véspera de feriado. Estava em um barzinho com amigos, jogando sinuca em Caravelas, no sul da Bahia, e meu telefone tocou. Era a bióloga Fábia Luna, com quem trabalhei alguns anos.
Atendi a ligação e ela falou que estava com uma baleia na Amazônia, no rio Tapajós, e queria que eu fosse para lá ajudar a tratá-la porque ela não entendia de baleias.
A primeira impressão que tive foi que ela estava brincando comigo. E falei: 'tá bom. Imagina, uma baleia na Amazônia...'. E ela disse que era verdade, se tratava provavelmente de uma baleia minke [uma espécie que atinge cerca de 11 metros de comprimento].
Ela foi contando a história e me convenci de que não era uma brincadeira. Ela trabalhava no Ibama e disse que, se eu tivesse disponibilidade, era para eu ir lá no dia seguinte.
Voltei para o bar e disse: 'vou ter de parar de jogar porque estou indo para a Amazônia atrás de uma baleia'. Meus amigos acharam que eu estava arranjando uma desculpa para fugir do jogo, já que eu estava perdendo
No dia seguinte, embarquei e foi uma longa viagem — quase um dia viajando. Quando cheguei ao Tapajós, a baleia tinha desaparecido. Foram três dias de busca, no helicóptero, até encontrá-la.
'Tive noção do que é a Amazônia'
Eu nunca tinha ido para a Amazônia, essa foi a primeira vez. Achava o rio Caravelas grande, mas quando vi o rio Amazonas comecei a ter noção do que realmente é a Amazônia.
Estávamos bem mobilizados, o Ibama cedeu o helicóptero usado para controle de incêndios e fizemos divulgações em rádios, TVs e jornais locais pedindo informações. A primeira notícia foi de que ela tinha aparecido em uma comunidade do outro lado do rio.
A primeira aparição foi em Alter do Chão, perto da Floresta Nacional dos Tapajós, mas ela cruzou o rio.
Naquele ponto, o rio tem uns 14 quilômetros de largura. Foge da realidade de quem está acostumado com o rio Pinheiros e Tietê, em São Paulo
Fizemos uma busca visual pela baleia e, de vez em quando, descíamos nas comunidades onde havia relatos de ela ter sido vista, mas ela sempre já tinha ido embora. Essa busca durou uns três dias, até que a gente a localizou em uma praia.
'Animal mitológico era o que conheciam'
Em um desses locais que descemos, falaram que uma pessoa a espetou com uma lança e a baleia saiu sangrando. Isso acrescentou um pouco mais de urgência, porque não sabíamos a gravidade do ferimento.
Tudo o que é desconhecido às vezes gera receio nas pessoas, e até mesmo curiosidade.
As pessoas têm uma noção de que baleia é um animal dócil e não agressivo. De fato, é isso. Mas elas são muito pesadas. Essa minke deveria pesar o equivalente a um elefante adulto
A cauda é o ponto mais perigoso, porque ela tem muita flexibilidade e força que impulsiona saltos capazes de tirar o corpo inteiro, que pesa cerca de seis toneladas, da água.
A maioria quer ajudar, mas é um risco quando não se conhece o animal. Tentar segurar a cauda, como aconteceu ali, pode expor a população a uma situação de risco e acidentes.
Fora o risco de contrair doenças. Temos algumas bactérias e vírus em comum [com animais marinhos], como a leptospirose e estafilococos. Mas eles têm algumas só deles, com as quais os humanos nunca tiveram contato.
O fato era tão inesperado que as pessoas comentam que o primeiro que viu a baleia foi uma criança que estava na beira do rio. Ele voltou correndo para casa falando que viu a cobra-grande (um mito amazônico que atrai náufragos).
Para ele, que nunca imaginou uma baleia no rio, um animal mitológico era o mais próximo que tinha de referência
'Perguntei se tinha piranhas. Confirmaram'
Quando a gente encontrou a baleia, ela estava em uma água que batia mais ou menos na minha cintura. E não é muito grande, acho que tinha uns cinco metros e meio.
Fui tentar examiná-la para encontrar o ferimento, coloquei o snorkel (máscara para respirar embaixo d'água em pequena profundidade) e mergulhei. Mas a água do Tapajós é muito turva, não é clara como o mar.
Não conseguia enxergar minha mão na frente do rosto. Então, tive de apalpá-la com as mãos até encontrar a ferida. Consegui colocar os dedos dentro e vi que não atingiu seus órgãos vitais nem a cavidade abdominal, o que nos tranquilizou um pouco.
Mas tínhamos outras preocupações. Quando eu estou com uma baleia encalhada na praia, me preocupo com a mudança das marés e ondas que podem quebrar em cima dela. Pode ter água-viva, tubarão. Eu sei o que esperar.
No rio, isso é totalmente diferente. Quando fui aplicar o antibiótico, com uma agulha de 12 centímetros, tive de fazer em etapas para chegar ao volume adequado para o peso dela. Em uma dessas etapas, ela se mexeu e sangrou.
Coloquei o dedo para conter o sangramento enquanto o sangue coagulava e me lembrei de que não estava no mar. Perguntei aos ribeirinhos se ali tinha piranhas, eles confirmaram. Então, eu não podia tirar a mão dali de jeito nenhum
Os moradores locais também me orientaram a caminhar arrastando o pé, sem dar passos, porque a região tem raias com espinhos doloridos — assim, em vez de pisar nela, eu apenas esbarraria e ela se afastaria.
Por lá também tem candiru (peixe conhecido como 'vampiro'), que penetra nos orifícios e se alimenta do sangue. É uma realidade completamente diferente do acostumado.
Lá, vivi uma cena que nunca vou esquecer. A baleia se afastou um pouco da gente e passaram aqueles botos vermelhos, conhecidos também como cor-de-rosa.
Deveria ser a primeira vez que aquelas duas espécies estavam se encontrando. Uma, de mais de mil quilômetros rio abaixo, do mar. A outra, da Amazônia
Vivi várias coisas fora do normal nessa epopeia da baleia na Amazônia.
'Sensibilizados com a história'
A baleia estava a mais de mil quilômetros do mar. Ela não conseguiria voltar sozinha, então tivemos a ideia de fazer um cerco com uma rede em um igarapé [curso d'água de pequenas dimensões comum na Amazônia] enquanto fazíamos exame de sangue, tratávamos e a estabilizávamos.
Neste meio tempo, conseguiríamos um barco onde pudesse, com uma lona, formar uma piscina para ela. Esse barco navegaria uns três dias até chegar ao mar para soltá-la.
Infelizmente, não deu tempo. Ela acabou sumindo, ficou muito agitada.
Escutaram-na respirando e no dia seguinte ela não apareceu. Só no outro dia, apareceu morta, no mesmo lugar. Deve ter morrido na primeira noite, afundou, e depois de mais ou menos 30 horas formou gases suficientes para flutuar.
Um tempo depois, o esqueleto da baleia minke foi para a exposição no Centro Cultural João Fona, em Santarém, no Pará.
As pessoas da cidade se sensibilizaram com a história, até hoje comentam o que aconteceu. E a montagem do esqueleto é uma chance de as pessoas resgatarem e manterem a história viva
É muito legal que a comunidade tenha se apoderado disso. É mais fácil falar de conservação do meio ambiente, preservação, descarte adequado do lixo, quando você consegue personalizar a história. Sensibiliza mais do que tentar falar como um todo."
Como a baleia foi parar ali?
Esse é um mistério, mas existem teorias.
Temos outros casos no mundo de baleias entrando em rio, mas conhecemos pouco do motivo, se elas entram intencionalmente ou por desorientação. Ficaremos para sempre com essa dúvida
Segundo o veterinário, a necropsia indicou que a causa da morte da baleia foi infecção generalizada.
"Provavelmente, isso veio antes da espetada da lança. Só não sabemos se ela veio com isso do mar, o que poderia ter a desorientado e feito ela errar a navegação, ou se ela desenvolveu isso dentro do rio", explica.
Pelas contas dos especialistas, para percorrer mais de mil quilômetros, o animal nadou por, no mínimo, uma semana — considerando um nado constante, direto, em linha reta.
"Ela estava há uns 10 dias fora do ambiente dela, com outros bichos por perto, sem a salinidade da água. Isso gera estresse."
O veterinário explica que as baleias de barbatana, como a minke, fazem uma migração anual entre a Antártica e o Brasil, para se alimentar. No inverno, vão para próximo da Linha do Equador para se reproduzir nas águas menos agitadas.
Ou seja, em novembro, quando o caso aconteceu, ela deveria estar migrando para se alimentar, longe da região do Tapajós.
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