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Problemas respiratórios por queimadas ampliam risco em hospitais amazônicos

Reuters
Imagem: Reuters

Daniel Camargos

Da Repórter Brasil

08/05/2020 04h01

Número de crianças internadas por conta da fumaça dobra em áreas amazônicas a partir de maio, início 'da seca', quando os incêndios destroem a floresta. Enquanto sistemas de saúde ficam sobrecarregados por pacientes com covid-19, queimadas na floresta devem aumentar neste ano

A combinação entre a covid-19 e a fumaça gerada pelas queimadas da Amazônia, que acontecem no período de seca da floresta (de maio a outubro), pode ser catastrófica para moradores e hospitais da região. Nesta época do ano, o número de internações de crianças com doenças respiratórias dobra nas áreas mais afetadas pelo fogo, segundo estudo da Fiocruz.

"A soma da covid com queimadas é a tempestade perfeita para termos um pico de morte nos estados do Norte por causa de problemas respiratórios", afirma a pesquisadora das universidades britânicas de Oxford e Lancaster, Erika Berenguer, especialista em degradação florestal e uma das autoras de um estudo que demonstra a vulnerabilidade das populações da Amazônia à covid-19.

No ano passado, quando os focos de incêndio aumentaram 30% e estamparam as manchetes dos principais jornais do mundo, houve aumento de 2,5 mil internações mensais por problemas respiratórios. Estudo da Fiocruz analisou dados de hospitais de cerca de 100 municípios da Amazônia Legal em maio e junho de 2019. Os estados mais afetados foram Pará, Rondônia, Maranhão e Mato Grosso.

Em Rio Branco, no Acre, os hospitais ficam sobrecarregados a partir de maio por conta dos efeitos nocivos da fumaça, de acordo com o médico do Hospital de Urgências e Emergências da cidade, Guilherme Pulici. "Já teve ano em que a fumaça era tanta em Rio Branco que não dava para enxergar o outro lado da rua", recorda Pulici. Em Rondônia, a fumaça causada pelos incêndios florestais do ano passado causou o aumento de 70% nos atendimentos de crianças com problemas respiratórios no principal hospital pediátrico do estado.

O cenário é preocupante, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil, porque enquanto hospitais da região amazônica estão ficando sem leitos para internação de pessoas com a covid-19, as queimadas tendem a ser ainda maiores do que as do ano passado.

A perspectiva de aumento dos focos de incêndio em meio à pandemia é um alerta feito por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Para fazer esta projeção, eles consideram o aumento de 51% no desmatamento no primeiro trimestre de 2020 comparado ao mesmo período de 2019. "Quando a estação seca chegar à Amazônia, essas árvores [já] derrubadas vão virar combustível para queimadas. Esse foi o ingrediente principal da temporada de fogo de 2019, uma história que pode se repetir em 2020 se nada for feito", afirma a diretoria de ciência do Ipam, Ane Alencar.

Soma-se a isso o fato de a região Norte do país ter os piores índices de infraestrutura hospitalar e de números de leitos de UTI. "O efeito imediato: a região já ultrapassou qualquer outra no Brasil em número de casos confirmados da doença por milhão de habitante", escreveram pesquisadores em artigo subscrito pela Coalizão Ciência e Sociedade, que reúne 73 cientistas de todas as regiões do Brasil.

O sistema de saúde de Manaus, capital do Amazonas, por exemplo, já entrou em colapso. Foi a primeira cidade do Brasil a ficar sem unidades de terapia intensiva disponíveis desde o começo da pandemia. Corpos chegaram a ser enterrados em valas comuns no cemitério Tarumã, com caixões alojados uns sobre os outros. Outros dois estados da região da Amazônia Legal, Pará e Maranhão, decretaram o fechamento total (lockdown, na expressão em inglês) das capitais e cidades mais afetadas pela covid-19.

Doença respiratória crônica

A fumaça das queimadas da Amazônia costuma afetar principalmente as crianças, ainda que tenha impacto também na saúde de idosos — que são grupo de risco para a covid-19. A fumaça pode ser uma espécie de gatilho para o início de uma doença respiratória crônica, afirma Pulici, que é pediatra, imunologista e alergista.

A pesquisadora Sandra Hacon, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, explica que as crianças são mais vulneráveis à fumaça das queimadas porque o pulmão ainda está em desenvolvimento. "A criança começa a apresentar um quadro de redução da função pulmonar e isso traz problemas como asma". A perda de função pulmonar atinge ainda, segundo Hacon, a cognição e o aprendizado das crianças em idade escolar.

Nos idosos, a fumaça atua como agente irritante de vias áreas e pode agravar doenças pré-existentes, explica Pulici. A fumaça das queimadas tem compostos tóxicos como monóxido de carbono, dióxido de carbono e óxidos de nitrogênio, além de materiais particulados, com alta capacidade de dispersão — o que faz com que a fuligem possa chegar a locais distantes dos focos de incêndio, explica Hacon.

"Se o cenário de fogo e fumaça se repetir esse ano coincidindo com o novo coronavírus, temo pelos idosos e portadores de doenças crônicas, como cardiopatia e enfisema pulmonar", alerta Pulici. A previsão realizada pela Universidade Federal do Acre é que o pico do número de casos no estado, por conta da covid-19, deve ocorrer durante o mês de maio e acabar em setembro. Justamente o período em que as queimadas são mais intensas.

"O governo não pode permitir que as queimadas aconteçam. Com a covid-19 o cenário de caos será ampliado e os danos serão exacerbados", afirma a pesquisadora Hacon, da Fiocruz.

Pesquisadores do Ipam concordam: "É preciso agir rápido. Caso contrário, a situação de grandes queimadas, com enorme produção de fumaça, poderá impor sérios danos à biodiversidade da região, ao clima e, em especial, à saúde da população local, já grandemente afetada pela pandemia do novo coronavírus".

Impunidade e omissão

O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou, no final de abril, em uma transmissão pela internet, que "brevemente vocês estarão vendo as nossas forças desembarcando lá na região amazônica e atuando firmemente contra as ilegalidades". Segundo ele, o plano preventivo contra o desmatamento e as queimadas está "praticamente concluído" e deve começar em julho ou agosto.

No ano passado, no entanto, o governo do presidente Jair Bolsonaro minimizou a destruição da floresta. Primeiro, o presidente dizia que os focos de incêndio aconteciam por conta da seca; depois, acusou ONGs por serem as responsáveis pela destruição.

A Repórter Brasil, no entanto, revelou que os focos de incêndio que destruíram parte da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, nos dias 10 e 11 de agosto foram provocados por fazendeiros e produtores rurais de Novo Progresso, que se articularam em grupos de Whatsapp para financiar um incêndio generalizado na região sudoeste do estado. Eles fizeram uma vaquinha para dividir os custos do combustível e para contratar motoqueiros para espalhar as chamas, em episódio que ficou conhecido como o 'Dia do Fogo'.

Oito meses depois, o crime permanece sem culpados ou indiciados. A Repórter Brasil ouviu integrantes da Polícia Federal e do Ministério Público Federal responsáveis pela investigação, que atribuem a lentidão do inquérito ao fato de a perícia nos telefones celulares dos suspeitos não ter sido concluída. Eles também afirmam que a pandemia atrapalha as investigações. "Com o isolamento social e trabalho remoto, as coisas atrasam mais, infelizmente", afirmou um dos responsáveis pela investigação, que pediu anonimato.

Nesta quinta-feira (7), o governo federal decretou uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO), prevendo que as ações de combate ao desmatamento e focos de incêndio serão coordenadas pelos comandos militares. Com isso, órgãos como ICMBio e Ibama perdem o protagonismo das fiscalizações. A GLO vai estar em vigor entre 11 de maio e 10 de junho deste ano.

O cientista-sênior do Ipam, Paulo Moutinho alerta que, enquanto a fiscalização pode sofrer com a pandemia, os grileiros, madeireiros e garimpeiros, que são os principais responsáveis pela destruição da floresta, "não fazem home office".