Área incendiada no 'Dia do Fogo' foi transformada em plantação de soja
Passados mais de dois anos do chamado "Dia do Fogo", quando fazendeiros e empresários do sudoeste do Pará se articularam para queimar a floresta amazônica, ninguém foi preso e as investigações policiais não deram em nada. Junto com a impunidade, brota a soja.
A reportagem conversou com fontes das polícias Civil e Federal ligadas às investigações, que confirmaram que os casos não avançaram.
Em um dos locais mais devastados pelo fogo, o PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável) Terra Nossa, há lotes repletos de plantações de soja, conforme pode comprovar a Repórter Brasil quando foi ao local, em outubro de 2021. Esse tipo de cultivo contraria a finalidade dessa modalidade de reforma agrária, que deveria ser de interesse social e ecológico, destinado à subsistência das famílias assentadas.
Em um levantamento inédito, a reportagem cruzou as coordenadas dos locais onde flagrou a soja com os dados de alertas de incêndio dos satélites da Nasa. No "Dia do Fogo", entre 10 e 11 de agosto de 2019, foram registrados 197 focos de incêndio. A partir desse cruzamento, foi possível comprovar que uma área de 300 hectares com vários focos de incêndio na época abriga hoje, dois anos depois, plantações do grão. O objetivo do grupo que fez uma vaquinha para incendiar a floresta agora fica claro: abrir espaço para a soja.
Em um intervalo de três anos, a Repórter Brasil esteve duas vezes em Novo Progresso, cidade próxima ao assentamento, que é conhecida como "o epicentro do Dia do Fogo". A primeira vez, foi logo após as queimadas, quando revelamos quem eram os investigados. A segunda, em outubro de 2021, quando a reportagem observou uma cidade modificada, cercada por plantações do grão, com silos de armazenagem sendo erguidos, e um centro urbano modernizado, com lojas chiques e picapes robustas cruzando as ruas e avenidas recapeadas.
Se o fogo foi o combustível para o aparente progresso, o que não mudou, contudo, foi a violência que acompanhou o boom do agronegócio. Quem se opõe à investida dos empresários, que querem comprar e arrendar as terras destinadas aos pequenos produtores, sofre com ameaças e atentados. Dois líderes que atuavam no PDS Terra Nossa já foram assassinados e a atual liderança, Maria Márcia Elpídia de Melo, sobreviveu a um atentado e convive com ameaças constantes.
"O objetivo deles [empresários do agro] é desmatar. Isso está claro. Não precisa nem explicar. Só a autoridade passar voando aqui que vê", afirma Melo, que preside a associação de assentados e está inserida em um programa de proteção aos defensores de direitos humanos do governo paraense. Do seu lote, ela se divide entre o medo das ameaças constantes e a luta para conseguir sobreviver conciliando a produção com a preservação da floresta.
Melo acusa o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) de ter abandonado as famílias por não fornecer a infraestrutura necessária para que elas pudessem produzir. Um cenário que abre espaço para o roubo de terras e a pressão sobre os pequenos agricultores "Os grileiros estão avançando e fomentando a venda de lotes", afirma.
A acusação de Melo é confirmada por um diagnóstico do Incra antes da posse do presidente Jair Bolsonaro. O documento constata que a ausência de infraestrutura e crédito para agricultura familiar - além dos conflitos com grandes proprietários - levaram grande parte das famílias a desistir do lote e negociar a posse.
Procurado, o Incra afirma que "é contrário às atividades irregulares que destoam do objetivo do assentamento na modalidade projeto de desenvolvimento sustentável". O órgão diz ainda que está prevista para este ano a concessão de créditos para atividades produtivas. Leia a íntegra da resposta.
Floresta de pé e irmã Dorothy
O Terra Nossa foi criado em 2006. No ano anterior, a missionária norte-americana Dorothy Stang foi assassinada em Anapu, justamente por defender este modelo de reforma agrária voltado para a preservação da floresta.
Na prática, porém, o que se vê no Terra Nossa está distante do sonho de Dorothy e da luta de Maria Márcia de Melo. Depois de o assentamento ser afetado pelo roubo de madeira, como a Repórter Brasil mostrou em 2019, a soja foi semeada próxima à vila que concentra casas de alguns moradores. A área cultivada, que equivale ao terreno de três famílias, foi comprada por um empresário do distrito de Cachoeira da Serra, que também é proprietário de uma serraria, conforme relatam os moradores.
"A ocupação por plantações de soja evidentemente desvirtua o propósito do PDS, que é voltado para atividades econômicas aliadas ao desenvolvimento sustentável. A soja é uma das atividades mais nocivas na agropecuária", afirma o procurador do Ministério Público Federal, Gabriel Dalla Favera de Oliveira.
Vizinho à terra indígena
Para Melo, líder dos assentados, a soja não é uma plantação viável para quem sobrevive de agricultura familiar. "Tu já viu pequeno agricultor plantar soja? O que ele vai fazer com a soja?", questiona. "Eu não sei fazer nada com soja. Quem disser aqui que é plantador de soja é um baita de um laranja de empresário".
Diante da ameaça do agronegócio, o sonho de ter a própria terra é penoso para Melo. Dois líderes que a antecederam foram assassinados. Ela relata que ouve recados intimidadores com frequência e já foi alvo de atentados. O de 2020, a Polícia Civil investigou, mas ninguém foi preso ou indiciado.
A Polícia Civil paraense também não elucidou quem foram os responsáveis pelo "Dia do Fogo". O mesmo aconteceu com o inquérito da Polícia Federal, que não resultou em nenhuma prisão. A hipótese investigada por ambas é a de que o "Dia do Fogo" foi organizado por empresários e fazendeiros de Novo Progresso, que chegaram a ser interrogados e tiveram documentos, celulares e computadores apreendidos.
"O Incra vacilou. Não era para deixar esse homem fazer isso aqui", diz o assentado Pedro Ferreira da Boa Sorte, de 72 anos, apontando para a plantação de soja vizinha a seu lote no PDS Terra Nossa. Ele diz já ter resistido a várias investidas de fazendeiros para comprar o lote que recebeu. "Ficam cobiçando a minha terra, mas eu não arredo o pé".
A entrada para o PDS Terra Nossa é pela BR-163, a rodovia da soja, por onde seguem os caminhões carregados do Mato Grosso para o porto de Itaituba.
A quantidade de soja produzida em Novo Progresso quase dobrou em dois anos: de 24 mil toneladas em 2018 para 41 mil toneladas em 2020. A cidade vive um boom com o grão.
Se na área rural, pequenos agricultores sofrem com a investida dos sojeiros, na área urbana o "ouro verde", como é conhecida a oleaginosa, mostra sua pujança. Em um intervalo de dois anos, a cidade ganhou butiques, franquias de marcas famosas, restaurantes, e muitas ruas que eram de terra foram asfaltadas.
É o caso da churrascaria Planalto Grill, inaugurada no ano passado. A decoração tem espelhos no estilo Luís XV, flores de plástico e imensos aparelhos de ar condicionado.
Após o almoço de domingo, do lado de fora da churrascaria, o termômetro no painel do carro marca 43°C. A maioria das picapes estacionadas são novas e exibem adesivos com a bandeira do Brasil e frases de apoio ao atual presidente. "Uma nação, um povo, um líder. Eu apoio Bolsonaro 2022" está colado na caçamba de uma Toyota Hilux.
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