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Após ação de quilombolas, mineradora inglesa é interditada na Bahia

A mineradora inglesa Brazil Iron extrai minério de ferro na região mais alta da Chapada Diamantina, em Piatã, na Bahia - Fernando Martinho/Repórter Brasil
A mineradora inglesa Brazil Iron extrai minério de ferro na região mais alta da Chapada Diamantina, em Piatã, na Bahia Imagem: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Daniel Camargos

Da Repórter Brasil, em Piatã (BA)

18/05/2022 04h00

A imagem de Iemanjá está ao lado de Cristos crucificados, pôsteres do Vasco da Gama, fotos dos netos e de uma Nossa Senhora segurando uma folha de espada de São Jorge. As paredes de barro da casa de Leonisia Maria Ribeiro estão repletas de crenças, mas nos últimos anos ganharam marcas de que até a sua fé duvida. São rachaduras que atravessam os tijolos de adobe e desassossegam a benzedeira. "Essas bombas só faltam matar a gente", lamenta.

As bombas a que Leonísia se refere são dinamites usadas pela mineradora inglesa Brazil Iron para extrair minério de ferro na região mais alta da Chapada Diamantina, em Piatã, na Bahia. A benzedeira é moradora da comunidade quilombola da Bocaina, vizinha do empreendimento, e aponta o impacto das explosões como cicatrizes que racham as paredes de sua casa.

"Essas bombas estrondam a casa todinha. Tem hora que até as coisas da casa a gente vê sacudindo. Estou com medo dela [a casa] cair. Tenho imaginação de estar dormindo e uma hora a casa despencar de vez".

Semanas depois de a equipe da Repórter Brasil entrevistar Leonísia, o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recurso Hídricos), órgão ambiental do governo baiano, fiscalizou as instalações da mineradora e decidiu interditá-la temporariamente. A interdição vigora desde 26 de abril e foi motivada por pelo menos 15 irregularidades, entre elas não prever recursos para recuperar as casas rachadas.

A reza de Leonísia é forte. Enquanto mostra as rachaduras, ela lembra do passado, quando participava de uma celebração religiosa repleta de sincretismo. Aos 76 anos, fechou os olhos e puxou na memória a música que cantava enquanto benzia as pessoas: "Vem, vem, vem, vem Espírito Santo".

A poucos quilômetros dali, Ana Joana Bibiana Silva, de 81 anos, toca matraca e canta as ladainhas da encomendação das almas. A sala de sua casa está toda enfeitada com fitas coloridas, um resquício da última folia de reis, quando recebeu os moradores para a festa.

A quilombola Bibiana, responsável pela cerimônia de encomendação das almas, luta para resistir e sobreviver aos impactos negativos causados em sua comunidade após a chegada da Brazil Iron - Fernando Martinho/Repórter Brasil - Fernando Martinho/Repórter Brasil
A quilombola Bibiana, responsável pela cerimônia de encomendação das almas, luta para resistir e sobreviver aos impactos negativos causados em sua comunidade após a chegada da Brazil Iron
Imagem: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Leonísia e Bibiana nos transportam para Belonisia e Bibiana, as irmãs do best-seller 'Torto Arado', do escritor baiano Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio Jabuti de 2020. É impossível conhecer as comunidades quilombolas de Bocaina e Mocó, na Chapada Diamantina, e não associar ao que é narrado no livro, cuja trama acontece na mesma região. A ligação fica mais intensa por causa da coincidência de nomes entre as personagens da vida real e as da ficção - encharcada de realidade.

Enquanto no livro Belonisia e Bibiana têm a vida atravessada por um acidente com uma faca e pela intervenção dos seres encantados manifestos no Jarê (religião de matriz africana típica da Chapada Diamantina), na vida real, Leonísia e Bibiana também têm a trajetória permeada pelo sincretismo religioso e enfrentam juntas os efeitos da mineração.

Um dos problemas enfrentados pela quilombola Leonisia são as rachaduras em suas paredes, causadas pelas detonações da mineradora - Fernando Martinho/Repórter Brasil - Fernando Martinho/Repórter Brasil
Um dos problemas enfrentados pela quilombola Leonisia são as rachaduras em suas paredes, causadas pelas detonações da mineradora
Imagem: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Projeto bilionário

As duas comunidades quilombolas, que juntas somam 150 famílias, comemoraram a interdição temporária da mineradora. Para o coletivo de moradores SOS Bocaina e Mocó, a interdição já deveria ter acontecido, pois a mineradora atuava sem as devidas licenças ambientais.

Além da fé e da luta das duas comunidades, um episódio catalisou a atenção para a mineradora Brazil Iron. Em 28 de março, a equipe da Repórter Brasil foi até a sede da empresa, no centro de Piatã, solicitar uma entrevista com algum representante. Ao invés de respostas, o gerente de logística da Brazil Iron chamou a polícia para os jornalistas, o que provocou protestos de entidades como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo.

Ao ser questionado pela reportagem, em 11 de abril, sobre as infrações da Brazil Iron, o Inema não respondeu imediatamente. Decidiu enviar uma equipe para fiscalizar a empresa e retornou, semanas depois, dizendo que havia interditado as operações da mineradora. Listou 15 infrações, entre elas ausência de estudos para depositar rejeitos da mineração, deixando nascentes e rios vulneráveis (leia a nota).

Mais próxima da mineradora, a comunidade de Mocó sofre com o pó de minério, que matou as plantações e que faz os moradores se sentirem em uma vila industrial - Fernando Martinho/Repórter Brasil - Fernando Martinho/Repórter Brasil
Mais próxima da mineradora, a comunidade de Mocó sofre com o pó de minério, que matou as plantações e que faz os moradores se sentirem em uma vila industrial
Imagem: Fernando Martinho/Repórter Brasil

A Brazil Iron estima um prejuízo de R$ 200 mil para cada dia parada. Ao todo, as perdas somam R$ 4,4 milhões. Em nota, a mineradora disse que recebeu "com profunda surpresa e desapontamento" a interdição, negou cometer as infrações e avalia que a medida gerou "medo e insegurança" nas famílias que dependem do emprego na mineradora (leia a resposta da mineradora na íntegra)

Com 500 empregados, a mineradora é a subsidiária brasileira da holding inglesa Brazil Iron Trading Limited e tem 25 pedidos de pesquisa mineral na Agência Nacional de Mineração. Antes da interdição, tinha autorização para extrair 600 mil toneladas de minério por ano, no estágio de pesquisa e exploração. Os planos da empresa incluem a construção de uma nova planta e de uma ferrovia até o litoral baiano para exportar o minério. A previsão da empresa é investir cerca de R$ 5 bilhões, o que, segundo a assessoria de imprensa, geraria cerca de 25 mil empregos diretos e indiretos.

Nascente poluída

Os moradores também se queixam da contaminação da água, em especial da nascente do Bebedouro. "Eles [Brazil Iron] começaram a degradar em cima do morro e foi descendo o rejeito de minério para nascente", detalha a quilombola Catarina Silva, que lembra que, antes, a água era cristalina.

Catarina mostra a nascente que antes jorrava água cristalina e, após a instalação da Brazil Iron, foi sendo assoreada - Fernando Martinho/Repórter Brasil - Fernando Martinho/Repórter Brasil
Catarina mostra a nascente que antes jorrava água cristalina e, após a instalação da Brazil Iron, foi sendo assoreada
Imagem: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Outro problema é que a Chapada Diamantina é a caixa d'água da Bahia, explica Marjorie Csëko Nolasco, geóloga da Universidade Estadual de Feira de Santana. A região onde está a Brazil Iron é repleta de nascentes que abastecem os rios locais. "Suas águas cortam regiões áridas e favorecem todo o semiárido da Bahia. Portanto, deveria ser um local tombado".

A Brazil Iron disse que vai contratar uma empresa para analisar a qualidade da água e negou que seja responsável pelas rachaduras. Apesar disso, afirmou que "no intuito de comprovar sua boa vontade e preocupação com a população, contratou profissionais para realizar a reforma nessas casas".

'Como Cubatão'

Em Mocó, comunidade mais próxima da mineração, o sofrimento com a poeira é intenso. "Os pés de café foram secando e morreram", lamenta Irani Oliveira Costa. "Isso aqui virou uma área industrial. Não é mais habitável", diz sua filha, Solange, que compara Mocó com Cubatão (SP).

Para evitar beber água contaminada pelo minério, Bráulio Silva vai com seu burrinho até uma outra nascente buscar água limpa - Fernando Martinho - Fernando Martinho
Para evitar beber água contaminada pelo minério, Bráulio Silva vai com seu burrinho até uma outra nascente buscar água limpa
Imagem: Fernando Martinho

Questionada, a Brazil Iron disse que contratou seis caminhões-pipa que passam na estrada para tentar reduzir a poeira. Afirmou também que criou uma comissão de acompanhamento e que nesta quarta-feira (18) haverá uma assembleia com as comunidades para criação da CAE (Comissão de Acompanhamento do Empreendimento). Contudo, 14 entidades divulgaram uma nota se recusando a participar por apontarem falta de transparência da empresa.

"Se a sociedade como um todo, incluindo corporações, como as mineradoras, vive de maneira cada vez mais predatória, levando o planeta a um iminente colapso, as comunidades tradicionais têm saberes a compartilhar com todos sobre como viver de uma maneira mais equânime com seu entorno", afirma o escritor Itamar Vieira Júnior.

O escritor explica que as comunidades quilombolas detêm saberes ancestrais e uma trajetória ligada à capacidade de resistência. "Marginalizadas e invisibilizadas por séculos, estabeleceram uma relação sustentável com o meio em que vivem", destaca.

Para Vieira Júnior, o estado brasileiro não superou a visão desenvolvimentista atrasada, que não se ajusta mais ao mundo de hoje: "Parece fantasia, mas basta sobrepor mapas de comunidades quilombolas e de preservação ambiental para perceber a relação direta entre os dois, o que convencionamos chamar de sustentabilidade",

Enquanto a Brazil Iron mobiliza advogados e engenheiros para cumprir as condições impostas pelo órgão ambiental para voltar a minerar, os moradores se apegam à fé e se mobilizam para preservarem seus modos de vida.

O horário das explosões que afetam as casas dos quilombolas é colocado em uma placa diariamente em uma das portarias da mineradora - Fernando Martinho/Repórter Brasil - Fernando Martinho/Repórter Brasil
O horário das explosões que afetam as casas dos quilombolas é colocado em uma placa diariamente em uma das portarias da mineradora
Imagem: Fernando Martinho/Repórter Brasil

Além da poeira, da contaminação da água e das explosões, Davi Antônio de Souza, líder comunitário na Bocaina, aponta outro motivo para preservar a região: as plantas nativas que curam. Acompanhar sua explicação sobre as ervas é lembrar de 'Torto Arado' e seu personagem Zeca Chapéu Grande, curandeiro que usava plantas e rezas para afastar os males, muitos provocados pela mineração, conforme conta Bibiana no livro:

"O que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata. Diziam que talvez fosse por conta do passado minerador do povo que chegou à região, ensandecido pela sorte de encontrar um diamante, de percorrer seu brilho na noite, deixando um monte para adentrar noutro, deixando a terra para entrar no rio. Gente que perseguia a fortuna, que dormia e acordava desejando a ventura, mas que se frustrava depois de tempos prolongados de trabalho fatigante, quebrando rochas, lavando cascalhos, sem que o brilho da pedra pudesse tocar de forma ínfima o seu horizonte".

Na obra literária, as moléstias do espírito eram curadas com as ervas; na vida real os estragos feitos pela Brazil Iron nas montanhas da Chapada Diamantina são para sempre.