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À CPI, ex-secretária poupa Queiroga por saída e defende diagnóstico precoce

Andréia Martins, Hanrrikson de Andrade e Luciana Amaral*

Do UOL, em São Paulo e em Brasília

02/06/2021 04h00Atualizada em 02/06/2021 19h54

Depois de ocupar a cadeira de secretária de enfrentamento à pandemia da covid-19 por apenas dez dias, a infectologista Luana Araújo afirmou hoje, em depoimento à CPI da Covid, que não foi informada da razão pela qual foi desligada do governo federal.

De acordo com a médica, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga — a quem ela buscou poupar durante o depoimento —, informou que o seu nome "não passaria" pelo crivo da Casa Civil. O ministro será o próximo a ser ouvido pela CPI na próxima terça (8), em novo depoimento.

Simplesmente fui comunicada de que, infelizmente, essa nomeação não sairia. Eu agradeci profundamente a oportunidade de servir ao meu país, peguei minhas coisas e voltei para Belo Horizonte."
Luana Araújo

Luana exerceu a função informalmente entre 12 e 22 de maio. A saída ocorreu antes que o nome dela fosse publicado em ato no Diário Oficial da União. Segundo informações publicadas pela imprensa à época dos fatos, houve divergências entre as partes relacionadas a supostas condições estabelecidas pelo Palácio do Planalto.

A médica tem um posicionamento expressamente contrário a questões que são caras ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Com base científica, ela prega respeito às medidas de distanciamento fundamentais no combate ao alastramento do vírus e não concorda com o incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia no tratamento da covid-19 (como cloroquina e hidroxicloroquina).

Segundo a depoente, a notícia de que "a nomeação não sairia" foi dada pelo próprio Queiroga. No novo depoimento do ministro, o assunto deve voltar à tona. Senadores consideram que o titular da pasta da Saúde pode ter mentido quando disse que contava com total "autonomia" de Bolsonaro para exercer o cargo.

Antes da comunicação de que não ficaria à frente da secretaria, Luana disse ter percebido que "a coisa estava se arrastando" e observado a repercussão referente a declarações que ela havia dado sobre temas como cloroquina e isolamento social.

Entendi que a minha nomeação não sairia porque, quando eu vi que a coisa estava se arrastando, eu entendi que aquilo não ia acontecer. Já tinha sido publicada pela imprensa várias vezes essa questão das minhas falas. Eu sou uma pessoa assertiva, eu sou uma pessoa que acho que muita gente não está acostumada com esse tipo de posicionamento, mas eu sou uma pessoa assertiva e segura da minha competência e do que eu sei, mas, mais do que isso, eu sou segura daquilo que eu não sei."
Luana Araújo

A depoente esclareceu que havia estabelecido junto ao comando do ministério o compromisso de autonomia à frente da subpasta. Isso teria sido garantido a ela pelo próprio ministro de forma "afirmativa e concreta". "Pleiteei autonomia, e não insubordinação e anarquia", afirmou.

O que o ministro me apresentou foi um projeto sólido, baseado em evidências de superação desses obstáculos no contexto brasileiro e também a necessidade de alguém técnico e competente para conduzir esse trabalho. (...) Explicitei a ele, aceitaria o convite para essa posição se me fossem garantidas a autonomia necessária e sempre, sempre fossem respeitadas a cientificidade e tecnicidade."
Luana Araújo

Na fala aos senadores, a médica listou vacina, teste e combate à desinformação como as principais medidas para o enfrentamento à pandemia do coronavírus. E ressaltou que a corrupção "mata" ao tirar dinheiro que deveria ser investido na saúde das pessoas.

Corrupção mata. Simples. Corrupção rouba dinheiro da onde ele deveria ser investido. Isso é resposta de uma cidadã, não estou falando como técnica. Se esse dinheiro é desviado de áreas que são cronicamente subfinanciadas, isso é ainda mais complexo. Então, a resposta curta e direta é que corrupção mata."
Luana Araújo

Elogio a Queiroga

Luana afirmou aos congressistas que, durante o curto período em que trabalhou junto ao Ministério da Saúde, encontrou um "ministro extremamente proativo" e "orientado pelos valores corretos".

"O meu diagnóstico do período em que passei ali é condizente com o convite que eu recebi. Eu encontrei um ministro extremamente proativo, competente, capaz, orientado pelos valores corretos, científicos, dando, na verdade, um exemplo de persistência e resiliência de trabalho. Alguns dias eu recebi mensagens dele às 4h30 da manhã sobre temas que precisavam ser discutidos ou assuntos que a gente precisava começar a levantar e a discutir um pouco mais."

Para Luana, faltou pactuar as decisões referentes ao combate da pandemia com todas as esferas de governo.

"Acho que essa é uma das razões pelas quais o ministro Queiroga insistiu tanto na criação dessa secretaria, que tem por objetivo fazer essa coordenação, promover uma melhor coordenação nesse momento". Luana usou uma alegoria militar para explicar o caso.

É uma estratégia quase que militar. Você tem um inimigo importante, e aí você começa a dispersar seus soldados, cada um faz uma coisa, como é que a gente tem força para lidar com aquilo? Não tem, então é uma questão até de bom senso."
Luana Araújo

Defesa do diagnóstico precoce

A infectologista apontou o diagnóstico precoce dos pacientes com suspeita do novo coronavírus como principal urgência.

"Existe uma dificuldade das pessoas compreenderem a diferença entre abordagem precoce de um paciente e o tratamento precoce. Um paciente com suspeita de covid precisa ser abordado precocemente", explicou.

"E o que significa isso? Ele precisa ser abordado precocemente, ter acesso ao diagnóstico imediato. E a gente sabe que existe uma dificuldade sobre isso. Ele precisa do diagnóstico imediato, ser educado sobre as medidas de isolamento social, quanto à evolução da doença e precisa ser monitorado, principalmente, contra uma situação que é a queda da saturação nos níveis de oxigênio do sangue da pessoa sem que ela perceba", completou.

Luana foi questionada pelo senador governista e entusiasta da cloroquina contra a covid-19, apesar de a ciência mostrar a ineficácia do medicamento no combate à doença, Luis Carlos Heinze (PP-RS), se não acredita no tratamento precoce.

Este inclui remédios como a hidroxicloroquina, a azitromicina, a ivermectina e a nitazoxanida, além dos suplementos de zinco e das vitaminas C e D. A eficácia desse mix farmacológico contra a covid não é reconhecida por entidades como a OMS (Organização Mundial da Saúde).

Luana disse acreditar em tratamento precoce que funcione, mas que "a gente não tem nenhum" contra a covid-19.

A médica disse entender que, em situações de exceção, "quando as pessoas consideram que existe uma coisa que é rápida, fácil, ágil, barata e que substituiria todo um processo de educação de hábitos, de usar máscara, de lavar a mão, de distanciamento, que exigem uma compreensão básica do processo, é uma coisa muito mais complexa. É muito mais simples medicalizar tudo".

A fala veio em resposta à senadora Leila Barros (PSB-DF), que também quis saber a sua opinião sobre o chamado tratamento precoce.

Eu vou lá e dou um remédio, uma pílula qualquer, que está pronta, funcionando. Então, eu acho que essa adoção, infelizmente, encontra na população um desconhecimento técnico e um desespero, um despreparo emocional para lidar com isso que acaba ecoando. Então, quando alguém coloca isso de uma forma pública, ela encontra eco naquelas pessoas que estão desesperadas e que precisam sair de manhã, por exemplo, para trabalhar, porque a comida do dia depende daquele dia."
Luana Araújo

'Ciência não tem lado'

A infectologista declarou ainda que "ciência não tem lado" e fez duras críticas ao debate público criado em torno da possibilidade de prescrição de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento dos sintomas do coronavírus.

Ciência não tem lado. Ciência é bem ou mal feita. Ciência é ferramenta de produção e conhecimento para servir à população, priorizando a vida e a qualidade de vida."
Luana Araújo

Na visão dela, as discussões sobre fármacos que não têm comprovação científica na resposta à covid-19 são uma coisa "delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente".

Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente. Quando eu disse que há um ano atrás nós estávamos na vanguarda da estupidez mundial, eu, infelizmente, ainda mantenho isso, nós ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se a gente estivesse escolhendo de que lado da borda da terra plana a gente vai pular."
Luana Araújo

Após a exibição de um vídeo compilando algumas falas de Bolsonaro minimizando a gravidade da pandemia da covid-19 e as principais medidas de contenção da propagação do novo coronavírus, a ex-secretária lamentou a "falta de informações de qualidade".

A mim, como médica, infectologista, epidemiologista, educadora em saúde, isso me suscita a ideia de que eu preciso trabalhar mais, de que eu preciso informar melhor as pessoas. Me parece que falta informação de qualidade. Que na hora que você tem uma informação de qualidade e passa uma informação que a pessoa pode compreender, não é mais esse tipo de comportamento que a gente espera que aconteça. A mim me dói."
Luana Araújo

A médica também criticou o ambiente de polarização dentro do campo da medicina e afirmou que essa situação acaba afastando bons profissionais.

Infelizmente, por tudo que vem acontecendo, por essa polarização esdrúxula, essa politização incabível, os maiores talentos que a gente tem para trabalhar dentro dessas áreas não estavam exatamente à disposição para trabalhar nessa secretaria."
Luana Araújo

Vacinação e medidas restritivas

Antes do depoimento à CPI, Luana já tinha se declarado publicamente como defensora da vacinação em massa, favorável a medidas restritivas e contra o "kit covid", mesmo para pacientes com sintomas leves.

A infectologista afirmou também que "todos os estudos sérios" demonstram a ineficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina e que a ivermectina é "fruto da arrogância brasileira" e "mal funciona para piolho".

Divergências entre o Palácio do Planalto e o comando técnico do Ministério da Saúde são recorrentes desde que o novo coronavírus começou a se espalhar pelo país, entre fevereiro e março do ano passado. O impasse já levou, inclusive, à queda de ministros, como os ex-titulares do cargo Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.

Na avaliação do relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), a fala de Luana Araújo hoje deixa "cristalina, mais uma vez, a falta de autonomia do Ministério e do ministro da Saúde, tanto na formação de suas equipes, quanto no estabelecimento de políticas públicas de saúde".

*Colaborou Ana Carla Bermúdez

Errata: este conteúdo foi atualizado
Por erro da redação, um intertítulo em versão anterior deste texto informou equivocadamente fala da médica Luana Araújo. A frase correta é "a ciência não tem lado" e a reportagem foi corrigida.

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.