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Queiroga se opõe a Bolsonaro, diz não ser censor e muda versão sobre Luana

Hanrrikson de Andrade, Luciana Amaral e Thaís Augusto*

Do UOL, em Brasília e em São Paulo

08/06/2021 04h00Atualizada em 08/06/2021 20h11

No segundo depoimento à CPI da Covid, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, se opôs a posicionamentos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) — que promove aglomerações, se recusa a usar máscara e a respeitar o distanciamento social e defende a cloroquina contra a covid-19 —, mas admitiu não haver "carta branca".

O presidente me deu autonomia pra eu conduzir o Ministério da Saúde; isso não significa uma carta branca pra fazer tudo que quer, não existe isso. O regime é presidencialista. Até o momento, não houve nenhum ponto que me fizesse sentir desprestigiado à frente do Ministério da Saúde"
Marcelo Queiroga, ministro da Saúde

Ainda assim, Queiroga buscou reafirmar ter autonomia e disse que foi dele a decisão de não efetivar a infectologista Luana Araújo no comando da secretaria de enfrentamento à pandemia, subpasta do ministério.

O ministro também relatou ter orientado o presidente Bolsonaro sobre a importância do uso de máscara e do respeito ao distanciamento social. O chefe, no entanto, agiria por conta própria ao recusar as recomendações e promover aglomerações durante agendas públicas —a exemplo do passeio de moto realizado no Rio de Janeiro, no último mês.

Queiroga ainda negou a existência do chamado "gabinete paralelo", nome dado a uma suposta "estrutura de assessoramento" ao presidente Bolsonaro, sem vínculo com o Ministério da Saúde, durante a pandemia.

"Eu desconheço essa atuação em paralelo na minha gestão. Nunca vi esse grupo atuando de forma alguma", comentou.

Na fala aos senadores, o ministro confirmou que o país perdeu 2 milhões de testes do tipo RT-PCR. O exame é considerado "padrão ouro" na detecção do coronavírus.

"Cerca de 2 milhões de testes foram vencidos, mas a empresa que produz vai repor esses testes", afirmou. "[A fabricante] é sensível em face de ter vencido os testes dentro de um contexto de milhões e vai repor. Está em trâmite."

Perfil de Luana não era o 'mais adequado'

Queiroga buscou minimizar a polêmica saída da infectologista Luana Araújo, que permaneceu informalmente como secretária de enfrentamento à pandemia por dez dias, no mês passado.

O desligamento ocorreu, segundo informações que ainda circulam nos bastidores do governo, devido ao fato de a médica ter opiniões e convicções contrárias às do presidente da República, sobretudo em temas como cloroquina e isolamento social.

O ministro negou que tenha ocorrido qualquer tipo de interferência do comando do Palácio do Planalto e afirmou que esta foi apenas uma "decisão discricionária", isto é, um ato natural do exercício do cargo (nomear ou não servidores para o ministério).

O posicionamento de Queiroga contradiz declarações de Luana à CPI. Na semana passada, ela afirmou que seu nome havia sido reprovado pela Casa Civil, pasta que integra a cúpula do Planalto.

Luana foi escolhida pelo próprio ministro, mas foi informada que o governo havia desistido da nomeação. Segundo Queiroga, a decisão foi dele porque a médica não se encaixaria em um determinado "perfil" que ele esperava contar.

"Entendi que, no momento, não seria o perfil mais adequado para ficar à frente da pasta", declarou. "Entendi que, em face do perfil da doutora Luana, em despeito dela ser uma pessoa muito qualificada, não ia contribuir comigo para harmonizar questões que são discutidas aqui acerca de tratamento inicial."

Numa audiência na Câmara, em 26 de maio, Queiroga afirmou que Luana Araújo é "uma pessoa qualificada que tem condições técnicas para exercer qualquer função pública e nós encaminhamos".

"Ela não foi nomeada. Nós vivemos um regime presidencialista. Eu fui indicado por quem? Por quem é de direito, o presidente da República. E é necessário que exista validação técnica e que exista também validação política", declarou na ocasião.

O ministro disse hoje que deve escolher um nome que preencha o perfil até sexta-feira (11). "Alguém que tenha espírito público, qualificação técnica, que conheça o Ministério da Saúde e que seja capaz de me ajudar no combate à pandemia."

O desligamento de Luana em 22 de maio motivou sua convocação à CPI da Covid, onde ela se posicionou firmemente contra o uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 — e criticou colegas de profissão que a prescrevem —, explicou questões médicas com clareza e defendeu a ciência, ganhando elogios de senadores e do público que a acompanhou pela TV.

Hoje, Queiroga disse que o ministério "tem perdido quadros" e não haver hoje médicos infectologistas em sua equipe direta. "O que temos são médicos consultores, que nos apoiam."

Queiroga diz não ser 'censor do presidente'

Queiroga disse não ser "censor do presidente" Bolsonaro e evitou criticá-lo pelo descumprimento de protocolos básicos como uso de máscaras e promoção de aglomerações.

O depoente relatou, no entanto, que buscou orientar o chefe do Executivo federal a respeito da importância das chamadas "medidas não farmacológicas". O governante, mesmo assim, optou por contrariar as recomendações, de acordo com a versão apresentada por Queiroga.

"Sou ministro da Saúde, não um censor do Presidente da República, as recomendações sanitárias estão postas. Cabem a todos aderir a essas recomendações", afirmou. "Não me compete julgar os atos do Presidente da República. Já falei com ele, é um ato individual."

O relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), exibiu vídeo de passeio de moto feito pelo presidente Bolsonaro ao lado do ex-ministro da Saúde general Eduardo Pazuello, no Rio de Janeiro, no último dia 23.

Ambos circularam sem máscara, fizeram discursos para apoiadores do alto de um carro de som e provocaram aglomerações.

As imagens falam por si só, eu estou aqui como ministro da Saúde para ajudar o meu país e não vou fazer juízo de valor sobre o presidente"
Marcelo Queiroga, ministro da Saúde

"Todos têm a responsabilidade de cumprir as medidas não farmacológicas. Todos indistintamente nesse pais. Se vão cumprir ou não...o ministro não tem poder de polícia", defendeu Queiroga, novamente, ao ser questionado pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) sobre "motociatas" incentivadas por Jair Bolsonaro.

Na reunião da CPI hoje, o senador governista Luis Carlos Heinze (PP-RS) voltou a defender o tratamento precoce contra a covid-19 e disse que os medicamentos são responsáveis pelos mais de 15 milhões de recuperados da doença no Brasil, o que não pode ser comprovado.

Diante das falas recorrentes de Heinze, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) afirmou que entrará com uma representação contra o colega no Conselho de Ética do Senado.

Queiroga admite falta de eficácia da cloroquina contra covid

O ministro da Saúde admitiu que a cloroquina não tem eficácia comprovada pela ciência contra a covid-19. No primeiro depoimento à CPI, ele procurou evitar se posicionar sobre o uso do medicamento contra a doença.

Bolsonaro é um grande defensor da hidroxicloroquina/cloroquina até hoje, embora não haja comprovação científica de sua eficácia contra a doença.

Não há qualquer substância que tenha eficácia comprovada para prevenção ou tratamento precoce da covid-19. Há medicamentos que controlam sintomas, como febre. Algumas substâncias vêm sendo usadas em casos de pacientes hospitalizados, como o rendesivir, cujo uso é autorizado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o corticoide dexametasona.

Em outubro, a OMS (Organização Mundial da Saúde) publicou que havia evidências conclusivas da ineficácia da hidroxicloroquina para a covid-19. Além disso, desde dezembro, tanto a cloroquina como a hidroxicloroquina são inclusive contraindicadas pela OMS para pacientes da doença. A maioria dos fabricantes brasileiros de cloroquina não recomenda o remédio para covid-19.

O vice-presidente da CPI da Covid, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), quer convocar o presidente do laboratório Apsen, Renato Spallicci.

A farmacêutica produz remédio com a hidroxicloroquina como princípio ativo. Caixas do produto foram exibidas pelo presidente Jair Bolsonaro ao longo da pandemia na defesa do medicamento contra a covid-19.

Meta de 160 milhões de vacinados até dezembro

Queiroga informou que a meta do governo federal é vacinar 160 milhões de brasileiros, o que corresponde a cerca de 70% da população do país, até dezembro deste ano. Segundo ele, o governo já contratou doses suficientes para que o anúncio dessa meta possa ser feito. "A meta nossa é vacinar até o final do ano a população acima de 18 anos", disse.

Ele ressaltou que a vacinação em massa contra a covid-19 é sua prioridade à frente do ministério e as demais discussões, como a cloroquina, são "laterais".

No depoimento, Queiroga omitiu dados de rankings que comparam o desempenho de diferentes países na vacinação contra a covid-19 para enaltecer a atuação do governo brasileiro na imunização da população.

Ministro mente sobre casos de covid no futebol

Queiroga mentiu à CPI ao declarar que o último Campeonato Brasileiro teve apenas um caso positivo de coronavírus, quando na verdade foram mais de 300.

Questionado sobre a realização da Copa América no país, o ministro declarou que o campeonato "não é evento de massa" e que o risco de contrair ou não a covid-19 é o mesmo "com o jogo ou sem o jogo".

"Não acontecendo públicos nos estádios, naturalmente nós não teremos um risco de aglomerações e de uma contaminação maior, de tal maneira que o risco que a pessoa tem de contrair a covid-19 será o mesmo, com o jogo ou sem o jogo", declarou.

Ele também argumentou que o Brasileirão 2020 ocorreu sem grandes problemas.

Na verdade, o Brasileirão 2020 teve ao menos 320 casos positivos de covid-19 de atletas e treinadores, segundo levantamento da TV Globo que não considera os demais funcionários dos clubes de futebol da Série A. Todos os times tiveram diagnósticos positivos e, em 380 partidas, a média esteve próxima de um caso por jogo. Logo na primeira rodada, ainda em agosto, uma partida foi adiada de última hora porque o elenco do Goiás teve um surto com dez infectados.

Mesmo o Brasileirão atual já tem casos de covid-19: o Grêmio, por exemplo, estreou na competição com quatro desfalques por testes positivos; os palmeirenses Gabriel Verón e Michel estão afastados pelo mesmo motivo; e no Flamengo, o técnico Rogério Ceni e dois auxiliares também são casos ativos de coronavírus.

*Com colaboração de Ana Carla Bermúdez

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.