O planeta segue em risco

COP26 em Glasgow termina com acordo frustrante e dúvidas sobre seu real impacto na proteção do meio ambiente

Jamil Chade Do UOL, em Glasgow Yves Herman/Reuters

A 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26) em Glasgow, na Escócia, frustrou expectativas. Um acordo final frágil refletiu um mundo que vive um impasse entre tomar atitudes que garantam a própria sobrevivência e lidar com a existência de um modelo econômico insustentável.

Duas semanas de pressões se passaram em meio a dezenas de reuniões, atritos, litros de café, noites sem dormir e inúmeros rascunhos, até que se chegasse, enfim, a um consenso. O documento, segundo seus autores, prevê um livro de regras para um esforço global que evite aumentar a temperatura do planeta além de 1,5ºC.

A falta de ambição no capítulo financeiro conduz a um risco de compromissos em torno de cortes insuficientes nas emissões de gases de efeito estufa. Não há garantias, portanto, de que a meta de 1,5ºC será cumprida.

Apesar de aplaudida efusivamente por governos em salas de reunião, a COP26 apresentou resultados vistos com desconfiança por parte de ambientalistas e cientistas. Paira o temor de que as medidas acordadas sejam insuficientes para salvar a humanidade de uma crise climática.

"Os textos aprovados refletem os interesses, as condições, as contradições e o estado da vontade política no mundo de hoje. Eles dão passos importantes, mas, infelizmente, a vontade política coletiva não foi suficiente para superar algumas contradições profundas", lamentou Antônio Guterres, secretário-geral da ONU.

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Nosso frágil planeta está pendurado por um fio. Ainda estamos batendo na porta da catástrofe climática

Antônio Guterres, secretário-geral da ONU

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O futuro pede pressa

Parte das decisões ficou adiada para 2022, na COP27, no Egito. Mas o tempo para escapar de um ponto de não retorno está se esgotando e, se uma mudança profunda na estrutura econômica não acontecer ainda na década atual, o planeta verá seus habitantes lutarem por recursos básicos de sobrevivência.

As próximas previsões do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), que serão publicadas em fevereiro, darão a dimensão do que espera a humanidade se nada for feito: uma explosão da fome, da pobreza e o risco de uma ruptura social.

Diante desse cenário, quase 200 países desenharam um plano, depois de 30 anos de um processo que começou em 1992, no Rio de Janeiro. Ainda vago para muitos, o acordo corre o risco de confirmar ser o que a ativista sueca Greta Thunberg avisou nos primeiros dias do evento: "bla, bla, bla".

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O fim da energia fóssil começou, mas sem força

Glasgow entrará para a história como o local onde, pela primeira vez, negociou-se a inclusão em um texto oficial de uma referência à necessidade de se colocar fim à era de energias fósseis.

Mas a pressão de China e Índia venceu. O documento é suave. Apenas fala em esforços em direção ao objetivo de reduzir o uso de carvão, sem prazos, metas ou mecanismos. Os subsídios trilionários ao setor também continuam intocáveis.

Instantes antes da conclusão do processo, o governo da Índia agiu para minar ainda mais o acordo. Em vez de falar em acabar, o texto apenas propõe diminuir a dependência do recurso. Os emergentes insistem que não podem ser impedidos de desenvolver suas economias, após décadas de uso do carvão na Europa e em outras partes do mundo.

Ao receber forte oposição também da África do Sul, o texto demonstrou como qualquer debate sobre o fim da era dos combustíveis fósseis exigirá anos de negociação.

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Emissões e manipulações

Um dos pontos principais de Glasgow foi o compromisso de governos de reduzir emissões de CO2 até 2030 e buscar a neutralidade até 2050. Mas as promessas ainda são consideradas vagas e de fiscalização frágil. O receio dos ambientalistas é de que, mesmo com os anúncios, o impacto não seja o bastante para evitar um aquecimento do planeta até superior a 2ºC.

O IPCC afirma que as emissões precisam ser cortadas em 45% até 2030 para que a meta seja alcançada.

O governo brasileiro se aliou a um grupo de 96 países no Compromisso Global sobre Metano, que prevê reduzir em 30% as taxas de emissões globais até 2030. Mas a declaração não tem força legal, tampouco mecanismos claros de controle. Brasília ainda foi denunciada por ambientalistas por ter manipulado os dados e, assim, ter feito anúncios que, de fato, não são mais ambiciosos.

Em Glasgow, a esperança era de que o documento final trouxesse um compromisso mais firme sobre os cortes de emissões. O acordo admite que não há esforço suficiente para limitar o aquecimento global a 1,5ºC. O texto apenas "pede" que governos apresentem, em 2022, novos compromissos de cortes de emissões.

Diante da timidez dos resultados, cientistas do IPCC alertam que as consequências podem ser devastadoras. Um aquecimento de 2,7ºC pode colocar em risco o abastecimento e a qualidade da água de 28 milhões de pessoas só no Brasil. O impacto nos centros urbanos será de aprofundamento das desigualdades e da pobreza. Um aumento de 3ºC pode levar 170 milhões de pessoas a serem afetadas por secas extremas.

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Dinheiro, dinheiro e dinheiro

Mesmo antes de deixar Glasgow, governos de países em desenvolvimento não disfarçavam sua frustração. O motivo: a falta de compromisso dos países ricos em destinar recursos aos mais pobres.

Sem dinheiro, não há perspectiva de incentivo para que, em 2022, governos desembarquem com projetos mais ambiciosos de corte de emissões para a COP27, no Egito.

Para dezenas de entidades, e mesmo governos, o que foi acordado ficou longe do que se esperava. Não houve um compromisso explícito dos países ricos pelo financiamento, nem um caminho claro para aumentar os valores, e muito menos, para a criação de um fundo para os mais pobres. "Muito pouco, muito tarde", dizia um negociador.

Países em desenvolvimento, há décadas, admitem que estão dispostos a fazer sua parte pelo meio ambiente. Mas consideram que se trata de uma injustiça aqueles que poluíram por séculos agora repassarem a conta da transição e dos ajustes para todos.

Em 2009, fixou-se que os países ricos destinariam US$ 100 bilhões por ano aos mais pobres para facilitar essa transição. Mas governos como o do Brasil, Índia e China denunciaram que o dinheiro nunca chegou.

Em Glasgow, o objetivo era trazer no texto final garantias de que os recursos fossem finalmente repassados. O Brasil ainda propunha criar um comitê para que um novo valor da contribuição fosse estabelecido. Países ricos, porém, foram contrários.

No documento final, ficou estabelecido que um comitê da ONU fiscalizasse o progresso da contribuição dos países ricos em 2022, 2024 e 2026. A esperança é de que isso force Europa e EUA a abrir suas torneiras, criando uma pressão internacional.

O texto também fala na necessidade de o valor destinado aos emergentes ser "bem superior" aos US$ 100 bilhões da promessa anterior. Mas, diante da pressão de americanos e europeus, o texto não foi além de uma mera constatação.

Um outro ponto crítico na negociação foi a exigência dos países mais pobres de criar um fundo de adaptação, com um valor que duplicaria até 2025.

Mas o que se eliminou foi a proposta de um fundo destinado a compensar pequenas ilhas e locais que hoje de fato já estão vivendo uma ameaça existencial. Europa e EUA se recusavam a aceitar o projeto, alegando que o fundo seria o equivalente a um cheque em branco e que não poderiam aceitar o conceito de "compensação".

Juristas desses locais apontam que um tratado internacional neste sentido poderia abrir caminho para que, em outras esferas, governos busquem compensações pelo colonialismo ou pela escravidão.

Depois de muito protesto, e para garantir que não houvesse um impasse, o acordo acabou sendo aprovado, mesmo sem recursos suficientes aos mais pobres e apenas promessas vagas de ajuda técnica.

Uma das críticas veio da Federação Internacional da Cruz Vermelha, que aplaude o esforço para ficar abaixo de 1,5ºC. Mas alerta que os compromissos são "muito vagos". "Estamos decepcionados com o fato de que a COP26 não cumpriu o que precisava ser feito para financiar aqueles que estão no front da crise climática", alertou.

"A COP26 é um pequeno passo na direção certa. Mas o que o mundo precisava era de um enorme salto. Chegou o momento de nossos líderes serem responsabilizados", disse.

"Estamos extremamente decepcionados", disse Lia Nicholson, negociadora de Antiga e Barbuda e porta-voz de quase 40 países ameaçados pelo clima. "Saímos de mãos vazias, mas moralmente fortes", disse.

Tuvalu Foreign Ministry via Reuters Tuvalu Foreign Ministry via Reuters

Regulamentação de um mercado bilionário

Um dos principais avanços reais da COP26 foi o acordo que estabeleceu as regras do mercado de crédito de carbono, avaliado em bilhões de dólares, e que poderá ajudar a financiar a transição climática no Brasil. Mas uma taxa que seria proposta nesse mercado, para ajudar a financiar os mais pobres, foi recusada.

O tema estava pendente desde 2015, na COP25 em Paris. Países emergentes, como o Brasil, insistiam que o novo mecanismo deveria permitir que créditos do sistema criado pelo Protocolo de Kyoto fossem considerados.

Já os países ricos queriam desmontar o mecanismo anterior, alegando que isso poderia acabar gerando uma "dupla contabilidade" dos créditos que um país poderia ter, ampliando certas vantagens para o Brasil, um exportador nesse setor.

Se por anos o país resistia, Glasgow acabou vendo uma posição negociadora que cedeu à pressão. A solução foi criar um período de transição, na esperança de que se tenha um mercado regulado no futuro próximo.

Preocupava o governo a possibilidade de que, sem um acordo global, países começassem a proliferar acordos bilaterais no mercado de carbono, deixando o Brasil de fora ou estabelecendo regras prejudiciais ao país.

MAURO PIMENTEL / AFP MAURO PIMENTEL / AFP
MAURO PIMENTEL / AFP

Desmatamento e o destino da Amazônia

Glasgow foi também o palco de um compromisso assinado por mais de cem países para lutar contra o desmatamento das florestas até 2030. O Brasil aderiu à iniciativa, com a meta de acabar com o fenômeno ilegal até 2028. O tema era um dos maiores pontos de constrangimento internacional para o país. A adesão serviu, acima de tudo, para desmobilizar chantagens nas negociações.

Mas, sem credibilidade, o governo brasileiro não conseguiu convencer nem ambientalistas e nem cientistas de que o compromisso será cumprido. Além de não ser legalmente vinculante, o pacto não obriga o governo a agir imediatamente. Na prática, Bolsonaro usou a iniciativa para se blindar e, ao mesmo tempo, não ter de tomar medidas concretas.

Tanto o vice-presidente da Comissão Europeia, Franz Timmermans, como o enviado americano John Kerry, fizeram declarações no mesmo sentido: sem medidas concretas, não há como trabalhar com o Brasil e promessas não serão suficientes.

Para ambientalistas, o governo americano pecou em dar crédito ao Brasil. Para Diana Ruiz, do Greenpeace, "Kerry está legitimando a destruição florestal com seus acordos florestais na COP26" e "permitindo que Bolsonaro avance mais na destruição das florestas e no abuso dos direitos humanos".

"Enquanto a delegação brasileira retorna de sua turnê de relações públicas em Glasgow, seu Senado está apressando a votação de uma legislação que recompensaria e incentivaria a apropriação de terras, uma atividade criminosa responsável por pelo menos um terço de todo o desmatamento na Amazônia brasileira", alertou.

O Brasil está planejando atingir seu objetivo de reduzir o desmatamento ilegal, legalizando mais desmatamento

Diana Ruiz, do Greenpeace

Paul ELLIS / AFP Paul ELLIS / AFP
Jamil Chade/UOL

Para-diplomacia dos governadores, indígenas e movimentos sociais

Com a credibilidade do governo federal minada pela gestão de Jair Bolsonaro, a COP26 consolidou um movimento inédito: o contato direto entre outros atores da sociedade brasileira com interlocutores estrangeiros, em especial financiadores.

Ao longo de duas semanas, governadores ocuparam o espaço deixado por Bolsonaro, que não viajou para Glasgow, e assinaram acordos de aproximação com fundos de investidores. Os estados da Amazônia ainda se aproximaram de europeus, americanos e chineses, no esforço de mostrar aos donos do dinheiro de que estão dispostos a seguir metas mais ambiciosas que o governo federal e, assim, ter acesso a recursos que, hoje, não chegam ao Brasil.

A COP26 também revelou uma sociedade civil e um movimento indígena com uma mobilização capaz de chamar a atenção internacional. A APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e outros grupos se reuniram com John Kerry, atores de Hollywood e mais de uma dezena de governos estrangeiros, na busca por apoio para sua causa: a demarcação de terras.

Txai Suruí, a jovem indígena que abriu a COP26, havia dado o tom em seu discurso diante dos líderes no primeiro dia, denunciando a crise no país. A retaliação que ela sofreu revelou o incômodo que a para-diplomacia se transformou para o governo Bolsonaro.

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Consenso entre EUA e China

Em disputa permanente nos diversos tabuleiros da geopolítica, americanos e chineses chegaram em Glasgow fazendo provocações mútuas. No centro do debate não estava exatamente o planeta, mas a competitividade entre os dois países pelos mercados globais, assim como o protagonismo no cenário internacional.

Xi Jinping, o presidente chinês, seguiu sua já tradicional postura de não sair da China desde que a pandemia começou. Já Joe Biden tentou ocupar o centro das atenções e se apresentar como líder na busca por um acordo.

Mas, conforme os dias foram passando, uma aproximação entre as duas superpotências e os dois maiores emissores de CO2 do mundo passou a ser uma realidade. Faltando três dias para a conclusão da COP26, Pequim e Washington surpreenderam o mundo com uma declaração conjunta de que iriam adotar medidas ao longo do século para garantir uma resposta à crise climática.

Diplomatas interpretaram o gesto como um chamado aos demais países para que se entendessem e que Glasgow fosse socorrida. Mas, nos corredores, a declaração conjunta teve ainda um caráter estratégico: tanto os chineses como os americanos indicaram que, apesar de todo o confronto que existe entre os dois países em dezenas de assuntos, a proteção do planeta terá de encontrar um espaço de consenso.

Resta saber qual a real ambição desse consenso entre os dois maiores emissores de CO2, enquanto o mundo já olha para 2022 e a COP27 como mais uma oportunidade para convencer líderes de que o tempo está se esgotando.

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