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A culpa dos que ficaram

Familiares e amigos participam de ato ecumênico em homenagem às vítimas do incêndio em Santa Maria (RS) - Luis Gonçalves/AgenciaPreview
Familiares e amigos participam de ato ecumênico em homenagem às vítimas do incêndio em Santa Maria (RS) Imagem: Luis Gonçalves/AgenciaPreview

Cármen Guaresemin

Do UOL, em São Paulo

30/01/2013 13h46

"Não deveria ter deixado meu filho sair". "Eu deveria ter morrido com eles ou no lugar deles". Essas frases podem estar passando pela cabeça de muitos sobreviventes ou familiares de vítimas do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS). O fenômeno conhecido como 'culpa do sobrevivente' é comum, segundo especialistas, mas merece cuidado, já que pode até levar ao suicídio.

O termo surgiu na 2ª Guerra Mundial. O psiquiatra e diretor-secretário da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) Luiz Carlos Coronel diz que soldados viam seus parentes e amigos morrendo em batalha e se perguntavam: "Por que eu sobrevivi?". Alguns especialistas também acreditam que a descrição nasceu a partir de sentimentos experimentados por sobreviventes do Holocausto.

“Isso foi tema de muitos livros e filmes”, conta Coronel. “Quando há uma tragédia na família, as pessoas se perguntam onde falharam. Pode ser até mesmo em relação a uma doença". O psiquiatra ressalta que sentir culpa é normal, mas não em níveis excessivos. "Um jovem de 18, 20 anos, num sábado à noite, quer sair e se divertir. E não há nada de errado com isso, faz parte do crescimento”, comenta.

O psicólogo e professor da PUC-RS Christian Haag Kristensen afirma que, além de culpa, é comum sentir vergonha, revolta e raiva. E, segundo ele, não é incomum pessoas se suicidarem nessa situação. “Este seria um caso de urgência e emergência psiquiátrica, assim como uma reação psicótica. São casos que precisam de avaliação e tratamento especializado”, alerta.
 
Crença irreal

A psicóloga Ana Carolina Furquim explica que muitas vítimas desenvolvem a chamada “crença irreal”: “A pessoa cria uma regra na cabeça dela que não faz nenhum sentido. Nesses casos, é preciso fazer um acompanhamento psicológico”.

Ela diz que o sobrevivente precisa perceber que, se conseguiu se salvar, é porque venceu uma ameaça e é por isso que nossa espécie sobrevive. “Claro que uma morte inesperada é uma situação adversa, é diferente da doença, quando você meio que se prepara. Por isso, é preciso se amparar, procurar apoio com amigos e outras famílias”, diz ela.

Ela lembra que a mãe de uma das jovens mortas, por exemplo, insistiu para a filha sair: “Imagine como ela se sente agora. Mas ela queria apenas que a menina fosse feliz, que se divertisse”.

Acidente de avião

Coronel cita outra tragédia na qual atuou: o acidente com o avião da TAM em 17 de julho de 2007. A aeronave vinha de Porto Alegre e, ao pousar no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, percorreu a pista, atravessou uma avenida e se chocou contra um prédio.

“Cuidamos das famílias das vítimas. Foi uma experiência trágica e rica. Tínhamos duas equipes, uma em São Paulo e outra em Porto Alegre. Considero aquela tragédia pior porque as pessoas não tinham como reconhecer os corpos, que foram totalmente queimados. Ficavam em hotéis, esperando", recorda. Agora, essas pessoas marcam encontros para que o acidente não seja esquecido. "Faz parte do processo do luto”, finaliza.