Cloroquina foi cogitada contra zika, mas com covid-19 é diferente; entenda
Resumo da notícia
- Por enquanto, a cloroquina não passa de uma das várias apostas da comunidade científica no combate à covid-19
- Há dois anos, pesquisa realizada nos EUA descobriu que a cloroquina pode imunizar camundongos contra o vírus da zika
- Os resultados do laboratório nunca foram replicados em humanos por falta de pacientes, e a busca por um remédio acabou interrompida
- Apesar de o novo coronavírus também ser agente infeccioso, os dois tipos de vírus apresentam diferenças quanto às formas de contaminação e atuação
A cloroquina volta a ganhar espaço no noticiário, quatro anos após ter sido esperança no combate a uma outra doença viral: a zika. O medicamento é uma das apostas em pesquisas realizadas durante a pandemia do novo coronavírus, mas ninguém sabe ainda se funciona mesmo — nem contra a zika, muito menos contra a covid-19.
"Cada dia mais, vemos que o uso da cloroquina, seja precoce ou tardio, não muda a evolução dos pacientes para casos graves", afirma o médico infectologista Marcus Lacerda, pesquisador da Fiocruz Amazônia.
Uma etapa da pesquisa que Lacerda lidera, sobre o medicamento e o novo coronavírus, precisou ser interrompida devido ao risco de problemas cardíacos nos pacientes. "Existe uma pressão muito grande da sociedade sobre a cloroquina. A própria população solicita a prescrição, mas nós não estamos mais recomendando essa medicação. Estamos desestimulando o uso", acrescenta o infectologista.
Por enquanto, a cloroquina não passa de uma das várias apostas da comunidade científica no combate à covid-19. É uma tentativa natural, por causa das propriedades da droga que atua enfraquecendo diferentes vírus e, por isso, é usada há décadas no combate à malária. O desafio agora é provar que ela também é eficaz contra o novo coronavírus, mas as pesquisas estão apenas no começo.
"A cloroquina obviamente está sendo testada, e faz todo sentido, mas tudo ainda é inconclusivo", afirma o biólogo brasileiro Alysson Muotri, que em 2018 esteve na linha de frente das pesquisas de zika e cloroquina nos Estados Unidos. "Ainda há alguns dados contraditórios e não há resultado experimental positivo [contra o coronavírus], mas testar me parece justificável", defende.
Há dois anos, a equipe de Muotri na Universidade da Califórnia em San Diego, nos EUA, descobriu que a cloroquina pode imunizar camundongos contra o vírus da zika. Apesar de animadores, os resultados do laboratório nunca foram replicados em humanos por falta de pacientes, e a busca por um remédio acabou interrompida.
"A zika diminuiu, hoje há poucos casos de infecção, e por causa disso não houve ensaio clínico [em pessoas]", explica Muotri, que atualmente estuda o coronavírus. "Estamos começando a entender o impacto dele no cérebro humano. O centro das atenções é pulmonar, é claro, mas há cada vez mais casos de impacto também no sistema nervoso do paciente", afirma.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) trata a cloroquina como solução, ainda que não haja evidências científicas nesse sentido. O Ministério da Saúde orienta a administração do remédio em pacientes com covid-19 em estado grave, mas admite ainda estar "monitorando estudos de eficácia e segurança", por isso "em qualquer momento poderá modificar sua recomendação quanto ao uso, baseado na melhor evidência disponível".
"As pessoas só devem usar cloroquina em um ambiente de pesquisa, sendo monitoradas por um médico e sob regime de pesquisa clínica", reforça o infectologista Marcus Lacerda. "O uso profilático, como precaução, não. Não tem qualquer evidência no planeta de que as pessoas que usam cloroquina não desenvolvem formas graves da covid-19", completa.
Zika e covid-19 têm pouco em comum
Médicos e cientistas que desenvolveram pesquisas sobre os casos de microcefalia associados ao vírus da zika dizem que, apesar de o novo coronavírus também ser agente infeccioso, os dois tipos de vírus apresentam diferenças quanto às formas de contaminação e atuação. O vírus da zika é transmitido via mosquito Aedes aegypti e prejudica principalmente a formação de fetos, enquanto o da covid-19 faz mais vítimas entre idosos e tem transmissão direta, de uma pessoa para outra, por isso é uma epidemia de mais rápida disseminação.
"O fato de a zika ter um vetor, o mosquito, torna mais fácil atacar o vírus. A covid-19 não tem um vetor intermediário, por isso se propaga de forma mais rápida", explica Alysson Muotri. "A situação é mais emergencial. O vírus da zika começou restrito; agora [o coronavírus] é um vírus de mutações rápidas, que se adapta rapidamente. Tudo é uma questão mais emergencial."
De certa forma, as epidemias de zika e coronavírus têm pouco em comum. "Uma diferença grande foi que o Brasil foi o centro global de infecções de zika. A doença chegou primeiro aqui", relembra o gerente de Pesquisa e Desenvolvimento Clínico do Instituto Butantan, Tazio Vanni. Ele trabalhava no Ministério da Saúde durante o surto da zika.
"Já o coronavírus apareceu na China, então o Ministério da Saúde já tinha se movimentado, já esperava a vinda ao Brasil. Outra questão é que a letalidade da zika para a população geral nem se compara ao que a gente está vendo com o coronavírus", compara Vanni.
Em 2019, a zika matou uma pessoa a cada 3.480 casos notificados no Brasil. A covid-19 está em uma morte a cada 15,7 casos oficiais, de acordo com o boletim divulgado ontem pelo Ministério da Saúde — 2.906 óbitos e 45.757 casos da doença causada pelo novo coronavírus.
Vacina experimental contra a zika
O vírus da zika foi descoberto nos anos 1940 em Uganda. A partir de 2007 causou alguns surtos em ilhas do Oceano Pacífico e em seguida chegou ao Brasil. A emergência de saúde pública durou um ano e meio no país, mas ainda há novos casos. O boletim mais recente do Ministério da Saúde, divulgado em dezembro, registrava 3.474 casos confirmados da síndrome congênita (SCZ), dos quais 55 foram em 2019.
Também em dezembro, uma vacina experimental desenvolvida pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, mostrou resultados positivos contra o zika. No teste feito com macacos rhesus, as cobaias foram expostas ao vírus duas vezes durante a gestação, e as fêmeas que haviam sido vacinadas apresentaram menor concentração do vírus no corpo após darem à luz. Quanto aos filhotes, nenhum dos vacinados foi infectado.
Cloroquina ainda precisa de bateria de testes
Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou cautela quanto ao uso da cloroquina contra o novo coronavírus, mas a incluiu em uma bateria de testes pelo mundo. É um procedimento padrão: não anunciar como solução milagrosa, mas estudar em laboratório para ver se funciona. Segundo o diretor de operações da agência, Michael Ryan, ainda não há "evidências empíricas" da eficácia do medicamento, que já é testado ao redor do mundo.
É apenas o primeiro passo. Se aprovada em diversas condições em laboratório, a cloroquina em seguida precisa ser testada em grupos controlados de pacientes com covid-19. Os resultados de todas essas pesquisas precisam ser comparados, e o remédio deve se provar eficaz para só então poder ser usado em larga escala.
Nove entidades médicas nacionais assinaram documento que prega cautela quanto ao uso de cloroquina em pacientes diagnosticados com o novo coronavírus. "Em relação ao tratamento, até o momento não há disponível um medicamento que tenha demonstrado eficácia e segurança", apontam a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), o Instituto de Medicina Tropical da USP (Universidade de São Paulo) e outras sete instituições.
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