Aperto de restrições em SP vem com um mês de atraso e pode ser insuficiente
Chegando perto do colapso e registrando recordes negativos, o estado de São Paulo inteiro entrou na fase vermelha, a mais restritiva do Plano São Paulo, neste fim de semana. A decisão pelo endurecimento, porém, chega com pelo menos um mês de atraso e, agora, pode ser insuficiente, apontam especialistas ouvidos pelo UOL.
Para eles, a gestão de João Doria (PSDB) deveria ter sido mais mais rígida ao se deparar com a falta de conscientização de parte da população em seguir as recomendações e o surgimento de novas variantes do vírus. O governo, por sua vez, alega que segue as diretrizes do Plano SP e que não descarta tomar outras atitudes, caso os números continuem a crescer.
Atualmente, São Paulo tem 79,4% do leitos de UTI (unidade de tratamento intensivo) e há uma possibilidade, em caso de não desaceleração, de um colapso no sistema em meados de março. Em algumas cidades, como Bauru, ela já encosta quase em 100% (confira no gráfico abaixo).
"Nós estamos um pouco atrasados", diz o infectologista Marcos Boulos, membro do Centro de Contingência. Para ele, a fase vermelha é "absolutamente necessária". "E talvez só ela nem seja suficiente. Vamos ter que avaliar isso nas duas semanas que seguem porque ainda vamos ter uma subida importante de casos e mortes nessas duas semanas."
Está previsto, em duas semanas, não termos mais leitos de UTI. Então, provavelmente, muitas pessoas poderão morrer sem ter atendimento médico em UTI, aquelas que são mais graves.
Marcos Boulos, membro do Centro de Contingência
Desde o fim do ano passado, o governo paulista começou a ensaiar um aumento nas restrições no estado. A última, no fim de janeiro, foi abandonada no meio do caminho —falta de cautela que também foi alvo de críticas.
Insuficiente
Presidente da SPI (Sociedade Paulista de Infectologia) e membro do Centro de Contingência, Carlos Magno Fortaleza diz que a situação atual da pandemia no estado é reflexo de as restrições não terem sido adotadas ou mantidas na época.
"Sem dúvida, mas eu parto do princípio do: 'ainda bem que fez [agora]', certo?" A SPI, inclusive, apresentou uma carta com críticas ao Plano SP, indicando que ele é 'insuficiente'. "Creio que esse texto e outras manifestações [de fora do Centro] pressionaram o governador a fazer o que ele fez", diz Fortaleza.
Morador de Botucatu, no interior paulista, o presidente da SPI avalia que, na região, Doria é visto como o "monstro do lockdown". Cidades do interior paulista decidiram não respeitar a fase vermelha. As restrições também motivaram protestos, como o de caminhoneiros que bloquearam a Marginal Tietê, na capital, na última sexta (5). "Entendo um pouco a hesitação dele em seguir as nossas normas", pontua Fortaleza, que se diz "muito de esquerda".
Ana Brito, epidemiologista da UPE (Universidade de Pernambuco), avalia que a fase vermelha deveria ser ainda mais rígida. Para ela, deixar algumas atividades, como escolas e igrejas, em funcionamento é como "tapar o sol com a peneira". "O vírus circula com as pessoas, não importa a fé ou a religião", pondera a médica.
População relaxou
Fortaleza diz que o que levou à piora da pandemia em São Paulo "foi o relaxamento das medidas no estado", mas que "não adianta colocar só na conta do governo quando o cidadão não faz a sua parte".
Nós também teríamos a segunda onda independente das festas de fim de ano e do Carnaval porque as pessoas estão relaxando no dia a dia.
Carlos Magno Fortaleza, membro do Centro de Contingência
Boulos concorda: "as pessoas não respeitaram" as medidas de restrição. "Claramente, a gente teria que ter começado antes. Porque já estava sendo esperada essa falência do atendimento médico", diz o infectologista.
A decisão de implementar a fase vermelha está de acordo com parte da visão do Centro de Contingência, diz o presidente da SPI. "Não atende 100%, mas eu diria que atende 70%".
Fortaleza —que lembra que o grupo é um espaço de discussão livre e consultoria, mas nem sempre seguido— dá como exemplo a permissão para que templos religiosos possam operar durante a restrição. "Até um certo ponto, eu entendo algumas concessões dentro do âmbito político, mas não concordo com elas. Abrir templos, por exemplo, é um absurdo."
Para Boulos, a flexibilização feita no início do mês passado "não foi boa, não deveria ter ocorrido mesmo". E, segundo ele, nada indica que a situação estará melhor daqui a duas semanas, quando a gestão Doria deve reavaliar a fase vermelha em todo o estado.
"Mesmo com o fechamento parcial agora, as pessoas que estão sendo infectadas agora só vão manifestar [a doença] daqui a duas semanas. Daqui a duas semanas não vai melhorar. Nós vamos ter piora", diz. "De fato, a situação não é nada tranquilizante. É possível que o governo tenha que prorrogar o que está acontecendo agora por mais duas semanas pelo menos."
Estado tomou as medidas necessárias, afirma secretária
Ao UOL, Patrícia Ellen, secretária de Desenvolvimento Econômico, uma das responsáveis pelo Plano SP, defendeu que o projeto está sendo aplicado "na sua versão mais rígida", visto que é a primeira vez que o estado inteiro fica na fase vermelha, com uma exceção para as escolas, cuja abertura "é um compromisso firmado no mundo inteiro".
[No início do ano,] nós antecipamos a classificação mais dura para uma série de regiões. Quando saímos de 70% [da ocupação de UTI] para 75% em cinco dias, aplicamos um rigor maior para todo estado. Há narrativas dizendo que as medidas foram muito leves e muito duras, veja os protestos. O mais importante, agora, é aplicar e respeitar as medidas. O momento tem de ser de união e mobilização para que as decisões sejam respeitadas.
Patrícia Ellen, secretária de Desenvolvimento Econômico de São Paulo
Para ela, o principal problema é a falta de articulação federal e o atraso nas vacinas. "Nós poderíamos ter feito muita coisa [anteriormente] com uma atuação centralizada [por parte do governo]. A principal é que poderíamos ter mais vacinas. O ponto mais importante é: onde estão as vacinas?", questionou a secretária.
São decisões fundamentadas no Plano SP, diz Doria
Questionado sobre as atividades que não estão abarcadas no Plano SP, Doria afirmou, em coletiva na última sexta (5), que todas as decisões são "fundamentadas no Plano" e a fase vermelha "não é lockdown".
As igrejas podem funcionar com critério estabelecido pelo Plano São Paulo. Há limite máximo de 40%, distância de 1,5 metro, obrigatoriedade de uso de máscara, de tirar temperatura, de oferecer álcool gel gratuitamente, evitar toques. São critérios sanitários que também existem para as escolas. Faremos o acompanhamento diário da covid. Se tivermos necessidade de endurecer medidas, faremos.
João Doria, governador de São Paulo
Apesar das declarações oficiais de Doria e sua equipe de que as medidas seguem o plano e foram tomadas de acordo com o Centro de Contingência, o clima mudou no Palácio dos Bandeirantes na última semana. Secretários e pessoas próximas ao governo avaliam que as medidas ajudarão, mas podem não ser suficientes, dada a velocidade da transmissão no estado e no país na última semana.
Para o epidemiologista Paulo Menezes, coordenador do Centro de Contingência, a liberação de escolas passa por uma necessidade de parte dos estudantes enquanto do futebol "não faz muita diferença epidemiológica, já que não tem torcida". E as igrejas? "Aí é outra história", diz o médico, sem comentar mais.
João Gabbardo, coordenador-executivo do comitê, foi na mesma linha. Ao UOL Entrevista, o médico sanitarista pediu às pessoas que, "se possível, orem em casa", mesmo com a liberação.
Pessoas que vão [às igrejas] devem ser alertadas: estão indo para uma zona de risco. Não tem chance das pessoas estarem dentro do ambiente cantando e é impensável estarem sem máscara.
João Gabbardo, coordenador-executivo do Centro de Contingência do Coronavírus
São Paulo precisa de lockdown?
Para Fortaleza e Boulos, quanto mais restrição, melhor para frear a transmissão. Medida mais dura possível, o lockdown não é visto como "factível". "Nós realmente precisamos fazer um balanço entre o ideal e o factível sob o risco de apenas polarizar sem chegar a resultados práticos", diz o presidente da SPI.
Fortaleza concorda com o lockdown adotado pela cidade de Araraquara (SP), por exemplo, mas não acredita que a iniciativa seja possível na região metropolitana de São Paulo, por exemplo. "É muito difícil fazer porque, como você precisa de uma vigilância importante, você precisaria do Exército", diz Boulos. "E, claramente, não poderíamos contar com o Exército porque o governo federal não está dando muita bola para essa epidemia."
"Estrago já está feito"
Especialistas de fora do Centro de Contingência, porém, são favoráveis a que se aperte ao máximo possível a circulação de pessoas. Aliás, não é uma posição de hoje. Em janeiro, eles já haviam indicado ao UOL essa necessidade, que foi ironizada pelo governador João Doria, qualificando-os como "personal specialists" da reportagem.
Membro do Observatório Covid-19 BR e porta-voz do grupo, que reúne 81 especialistas que estão no Brasil e no exterior, a professora da Universidade Johns Hopkins Monica de Bolle reforça, mais uma vez, a necessidade de lockdown. "Estava claro que, se não houvesse ali [final de janeiro] uma medida bem restritiva, um lockdown real, que isso ia acontecer. E é o que a gente está vendo agora."
O que precisa é lockdown. A única maneira de tentar frear... Porque agora já foi. As cadeias de transmissão já estão a todo o vapor. Fechamento de tudo que não for essencial e limitações à circulação das pessoas. É o único jeito de frear.
Monica de Bolle, membro do Observatório Covid-19 BR
O chefe da infectologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) Alexandre Naime diz que a equipe de Doria perdeu uma "janela de oportunidade fantástica de fazer restrições no momento certo". "Era uma chance de impedir a transmissão da variante de forma mais efetiva do que agora. O grande estrago já está feito."
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