Ceará sob ataque: como facções locais e nacionais se juntaram para dominar o crime no Estado
Sem previsão para cessar os ataques em série, a população sente medo e evita sair de casa, parte do comércio fecha e turistas evitam região.
O Ceará já registrou mais de 150 ataques - de incêndios e tiros contra prédios públicos e bancos à explosão de dinamite na base de um viaduto - na primeira semana do ano.
Esse cenário de caos surgiu como reação de facções criminosas à promessa do novo secretário da Administração Penitenciária, Mauro Albuquerque, de adotar mais rigor contra entrada de celulares nos presídios e acabar com a separação de detentos em presídios diferentes a partir das facções às quais pertencem.
Sem previsão para cessar os ataques em série, a população sente medo e evita sair de casa, parte do comércio fecha e turistas evitam o Estado. Há registro de um policial ferido na mão durante um tiroteio e de três suspeitos mortos pela PM (Polícia Militar).
Para controlar a situação no curto prazo, o governo do Ceará pediu reforço. Trezentos agentes da Força Nacional já foram encaminhados para o Estado e outros 200 chegarão nos próximos dias, além de policiais emprestados de outras unidades da Federação.
Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, as medidas são insuficientes para combater as quatro facções que dominam o crime organizado no Ceará: a paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), a fluminense Comando Vermelho (CV), a cearense Guardiões do Estado (GDE) e a amazonense Família do Norte (FDN).
Referência no assunto, o doutor em sociologia e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC) Luiz Fábio Silva Paiva relata que as primeiras ações envolvendo facções criminosas no Estado ocorreram em 2005. O crime era, até então, controlado por gangues armadas e quadrilhas de traficantes que dominava determinadas regiões e disputavam violentamente entre si.
Sociólogos que estudam facções criminosas disseram à BBC News Brasil que o reforço no policiamento serve apenas "para enxugar gelo". Eles afirmam que o aumento significativo do efetivo de segurança nas ruas até deve abafar os ataques nos próximos dias, mas um simples comando das facções pode trazer uma nova onda de violência.
Articulação em nível nacional
A partir de 2005, membros desses grupos criminosos locais passaram a se envolver com integrantes de facções nacionais. Uma delas é o PCC que participou de ações como o famoso assalto ao Banco Central em Fortaleza - de onde cerca de R$ 164 milhões foram furtados - e estratégias como a batizada de "novo cangaço", com assaltos violentos e cinematográficos a agências bancárias no interior do Estado. Foi nessa época que as facções passaram a organizar o comércio de drogas no Ceará.
No fim de 2015, lideranças locais se reuniram para criar um esquema de facções funcional e fundam os Guardiões do Estado. No início, esse grupo atuou em conjunto com o PCC e CV, mas em 2016 as facções de atuação nacional entraram em conflito e se dividiram. O PCC se aliou ao GDE, que, segundo estimativas, tem cerca de 600 membros nos presídios cearenses. Do outro lado, ficaram CV e FDN.
De maneira inédita desde então, segundo pesquisadores ouvidos pela BBC, essas facções anunciaram nos últimos dias uma trégua na disputa no Ceará. Por meio de um salve, como são chamados os comunicados emitidos por lideranças de organizações criminosas, vetaram brigas ou acertos de contas caso o governo coloque grupos rivais em um mesmo presídio.
"Meus irmãos GDE, nós pede humildemente que vocês entendam que se chegar qualquer liderança, PCC ou CV na nossas cadeias, que os irmãos acolham e der tratamento de um bandido a eles, der água, comida, escova, pasta, roupas e lençol. Em cima desta situação vamos dá essa trégua porquê é o está que está fazendo isso propositalmente no intuito de nós se matar. Como nós sabemos disso e da intenção do estado judiciário, nós não iremos satisfazer a vontade do estado. Iremos recebe-los os nossos inimigos com a dignidade de bandido e esperamos o mesmo feedback do lado deles", diz a mensagem.
Especialistas dizem que esse comunicado demonstra um grande poder de articulação e ação conjunta das facções quando elas precisam combater um inimigo maior - no caso, o Estado.
"É amadorismo e infantilidade você provocar um confronto de graça, como o secretário fez. A nova gestão faz isso e ainda é coroada porque diz estar combatendo o crime. Por outro lado, temos milhares de trabalhadores que não podem sair de casa, recordes de homicídio, chacinas, unidades prisionais sem estrutura e com servidores amedrontados", disse Luiz Fábio Silva Paiva, da Universidade Federal do Ceará.
Ele explica que essa mensagem demonstra também uma profissionalização das facções que ganharam uma capacidade de articular respostas ao Estado e até mesmo evitar serem usadas como "peça de manobra" em disputas políticas.
"Eles pensam: 'Se querem que a gente se mate, então não vamos atender a esses interesses'. É preciso um diagnóstico de como esses grupos se articularam e envolveram milhares de pessoas na sua dinâmica. Essa é a força das facções. Os estatutos deles falam de respeito, justiça, dignidade e usam elementos afetivos para conectar as pessoas que fazem parte desses grupos. Qual a alternativa? O que o Estado oferece a milhares de jovens em vias de envolvimento para que ele busque uma alternativa a esse grupo?", questiona o professor.
Medidas do poder público
Além dos 500 agentes da Força Nacional destacados para reforçar o patrulhamento e evitar novos ataques no Ceará, o governo da Bahia enviou cem policiais militares para ajudar a conter a crise. Piauí, Pernambuco e Santa Catarina também vão mandar juntos outros 43 PMs e agentes de inteligência.
"Enquanto ela (a força policial) estiver ali, funciona. Quando você retira, os problemas aparecem. É fato que diante de tantos policiais na rua, haverá recuo. Mas essa ideia de vigilância constante e onipresente é falsa porque tem prazo e logo depois volta com a mesma intensidade", afirmou Luiz Fábio Silva Paiva, que chamou a medida de "maquiagem".
Para ele, o governo precisa atuar a médio e longo prazo para evitar que mais jovens entrem no crime organizado e reforcem o "exército" das facções, com políticas de assistência social e emprego e uma reformulação do sistema penitenciário.
"É preciso saber o que acontece na vida deles. Saber por que eles se tornaram uma população sensível para o mercado de drogas e são agenciados muitas vezes em ações praticamente suicidas, como matar um policial. O indivíduo escolhe fazer parte disso, mas é preciso saber o motivo para dar recursos e condições de estudo e trabalho para agir no problema", afirmou Paiva.
O professor afirmou que outra medida importante é identificar as lideranças e agenciadores desses jovens para evitar novos recrutamentos dentro e fora dos presídios.
"Fora isso, é enxugar gelo. É colocar policial em risco para prender gente em massa e matar para amanhã mais gente entrar para o crime. Todo o sistema penitenciário também precisa ser refeito. A maior barreira para isso é que cuidar dos presídios não dá voto e isso não incentiva quem está no poder", disse o pesquisador Luiz Paiva.
Questionado pela reportagem, o Ministério da Justiça informou que "acompanha a situação no Estado e, desde o início, está dando apoio às forças de segurança locais". A pasta ainda afirmou que "entre as prioridades estão medidas que garantam a execução da verbas do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) na efetiva construção de estabelecimentos prisionais".
O governo cearense também anunciou ter transferido um líder de facção criminosa para um presídio federal. A administração estadual disse ainda que vai transferir outros 19. O pesquisador define essa ação como "uma besteira".
"Isso não dificulta em nada a vida dos criminosos. Se um líder é isolado hoje, eles nomeiam outro amanhã e tudo segue como se nada tivesse acontecido", explica Paiva.
Procurado pela BBC News Brasil, o governo do Ceará não respondeu quais serão as medidas de curto, médio e longo prazo que a administração planeja implementar contra a crise de segurança pública e se há alguma negociação em curso com lideranças de facções criminosas.
Ataques em outros Estados?
Professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e autora do livro A Guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, Camila Nunes Dias, diz que não vê risco dos ataques no Ceará se replicarem em outros Estados brasileiros.
"Essa crise está relacionada a um problema local e deve ser entendida como uma resposta às declarações do secretário. Mas Estados com mudanças significativas em suas gestões podem apresentar problemas. Um deles é São Paulo, onde o secretário que estava há mais de dez anos à frente da administração penitenciária foi trocado por um policial militar. Porém, ainda não vi nenhuma declaração dele que signifique uma mudança radical na política penitenciária e que possa causar problemas", afirmou.
A pesquisadora disse que Rio de janeiro, Amazonas, Paraná e outros Estados com grandes facções criminosas não apresentaram mudanças que possam causar reações. Ela alerta, porém, que a estabilidade nessas organizações é sempre precária e que pequenas mudanças podem gerar grandes reações. Uma das mais sensíveis são alterações em relação às visitas nos presídios e transferências de líderes de facções.
Nunes diz que esses grupos criminosos não estão interessados em criar confrontos desnecessários em outros Estados.
"Possíveis ataques (em apoio à crise no Ceará) causariam uma instabilidade em entes federativos onde não há nenhuma ruptura. Eles (presos) não pretendem atacar o estado. Eles reagem ao que entendem que são ataques do Estado à população carcerária. Essas crises serão sempre locais, a não ser que haja uma reação nacional, que eu acho muito difícil", afirmou a pesquisadora.
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