A comunidade yanomami refém de tiros e bombas de garimpeiros há mais de um mês
Por volta do meio-dia de 11 de maio, o líder indígena Dario Kopenawa recebeu uma ligação desesperada de uma aldeia remota na Amazônia.
A região do Palimiú, no interior de Roraima, tem uma população de cerca de mil habitantes vivendo às margens do rio Uraricoera. Só é possível chegar ali de avião ou após uma longa viagem de barco.
Os Kopenawa, do povo Yanomami, costumam receber pedidos de ajuda de comunidades da floresta, mas esse foi diferente.
"Eles nos atacaram", disse um homem. "Quase nos mataram".
"Eles": garimpeiros ilegais que chegaram em sete barcos a motor, alguns carregando armas automáticas, e atiraram indiscriminadamente.
Escondidos atrás das árvores, os Yanomami revidaram, usando espingardas e arcos. Um indígena foi atingido com uma bala na cabeça e quatro garimpeiros ficaram feridos, segundo informaram a Kopenawa.
Aterrorizadas, as mulheres fugiram para dentro da densa floresta com seus filhos. Dois meninos, de um e cinco anos, morreram afogados.
Naquele dia, os ataques duraram cerca de meia hora, mas os garimpeiros prometeram voltar para se vingar — e assim fizeram.
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), as ameaças e violências contra a região de Palimiú, na Terra Indígena Yanomami, já dura mais de um mês. Desde 10 de maio, já houve sucessivos ataques com tiros e bombas de gás. A organização sem fins lucrativos denuncia que, até agora, "as comunidades não receberam qualquer proteção do Estado".
A mineração é ilegal na Terra Indígena, mas os garimpeiros sempre encontraram formas para contornar isso.
"Os garimpeiros estão por todo lado", diz Kopenawa, que evita ir a áreas onde os mineradores ilegais estão, por já ter sido ameaçado de morte.
No dia seguinte ao primeiro ataque de maio, uma equipe da Polícia Federal (PF) viajou para Palimiú em um pequeno avião, e juntou-se a Junior Hekukari, que chefia o conselho local de saúde indígena.
Ao sair da área, Hekukari avistou alguns barcos com os motores desligados e imaginou que eles estavam tentando se esconder.
"Os agentes gritaram: polícia, polícia", conta Hekukari. "Mas não pararam. Não tinham respeito".
Os policiais reagiram e houve um intenso tiroteio. O grupo saiu cinco minutos depois e ninguém se feriu.
Quando Hekukari relatou o que havia acontecido, Kopenawa ficou pasmo. Se até mesmo a polícia estava sendo atacada, ninguém do seu povo estava seguro.
'Garimpeiros foram encorajados'
As invasões de garimpeiros às reservas indígenas se intensificaram sob o mandato do presidente Jair Bolsonaro, que já expressou diversas vezes seus planos para abrir parte dessas áreas protegidas para a mineração e agricultura.
O Instituto Socioambiental (ISA) estima que haja cerca de 20 mil garimpeiros somente em território Yanomami.
O procurador Alisson Marugal, do Ministério Público Federal (MPF) em Roraima, disse que a atividade ilegal foi impulsionada recentemente pela alta no preço do ouro e por uma ordem da Fundação Nacional do Índio (Funai) limitando o trabalho de campo devido à pandemia de coronavírus.
"Os garimpeiros não se isolam ou fazem distanciamento social", afirma o procurador. "Na verdade, eles intensificaram suas atividades".
As unidades de conservação, como as terras indígenas, são de acordo com especialistas e ONGs uma das formas mais eficazes de proteger a Amazônia, a maior floresta tropical do mundo e um enorme estoque de carbono que ajuda a desacelerar o aquecimento global.
Mas o presidente Bolsonaro, um cético em relação às mudanças climáticas apoiado por poderosos líderes do agronegócio, considera essas áreas grandes demais para o número de pessoas que vivem lá.
O presidente, cujo pai foi garimpeiro, é particularmente crítico em relação à extensão do território Yanomami, estabelecido em 1992 em uma região onde estão grandes riquezas minerais.
"Os mineiros ilegais foram encorajados... por um discurso que legitima seu trabalho", explica Marugal.
Kopenawa, que mora na capital Boa Vista, onde lidera a associação indígena Hutakara, diz que "Bolsonaro apoia os garimpeiros" e não tem interesse em proteger os Yanomami.
"Nosso território está sendo desrespeitado", denuncia. "E nossos pedidos de ajuda não estão sendo ouvidos."
'É óbvio que não há vontade política'
Kopenawa é filho do respeitado líder David Kopenawa, à frente da campanha que resultou na criação da reserva Yanomami. Apelidado de Dalai Lama da floresta, ele me disse quando nos conhecemos em 2014: "Homens brancos que têm dinheiro querem mais. Eles querem destruir mais. Essa é a tradição deles: eles não têm limites."
No ano passado, a mineração ilegal devastou uma área equivalente a 500 campos de futebol em terras Yanomami, segundo o ISA, e deve gerar ainda mais destruição neste ano. Os garimpeiros também poluem rios com mercúrio, que é usado para separar o ouro da lama, e são acusados de levar álcool, drogas e, mais recentemente, a covid-19, para as comunidades.
Se não é segredo onde eles estão, por que não estão sendo combatidos?
"É óbvio que não há vontade política", disse-me um ex-funcionário da Funai, que pediu demissão no ano passado porque "não aguentava mais".
"Existem algumas pessoas poderosas envolvidas na mineração ilegal que conseguem limitar ou prevenir qualquer ação."
As operações de fiscalização da Funai são tão inconstantes, acrescentou o ex-funcionário, que o impacto é muito limitado e os garimpeiros voltam rapidamente.
Procurada pela reportagem, a Funai disse que não havia ninguém disponível para entrevista. O gabinete do presidente Bolsonaro tampouco respondeu ao pedido de posicionamento.
Enquanto a pandemia se alastrava na Amazônia no ano passado, os Yanomami criaram uma barreira no Uraricoera, o maior rio de Roraima, em um esforço para impedir a circulação de barcos ao redor de Palimiú.
Eles acreditam que o ataque de maio foi uma retaliação depois que os indígenas interceptaram um navio e apreenderam gasolina e equipamentos.
Alisson Marugal diz que há suspeitas de que membros de facções criminosas foram contratados para fazer ataques contra as comunidades e para proteger áreas de mineração ilegal. Essa conexão entre o crime organizado armado e a mineração ilegal estaria por trás da violência recente.
"Estamos vendo algumas armas pesadas chegando aos acampamentos", ele me disse.
Cinco dias após a visita da polícia, o Palimiú foi atacado novamente, lembra Kopenawa. À noite, chegaram vários barcos, de onde pessoas começaram a atirar.
Em maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso determinou que o governo Bolsonaro tome medidas para proteger esta e outras comunidades indígenas e para tirar os garimpeiros da área.
Mas Kopenawa diz que os Yanomami estão cansados de esperar.
"Estamos sob ameaça", diz o líder indígena. "Nossa paciência acabou."
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