Bilhetes do CV: PF encontra até pedido de aumento de 'salário' ao tráfico
A investigação sobre o repasse de bilhetes aos chefões do CV (Comando Vermelho) na penitenciária federal de Catanduvas (PR) com o auxílio de um policial penal revela morte, tiros em uma favela do Rio de Janeiro e até mesmo um pedido de aumento no "salário" pago pelo tráfico.
"Eu queria um aumento no bacalhau [gíria para se referir ao pagamento]. Só que o pessoal não dá, não", diz Jessica Caroline Ribeiro Pinto em diálogo por telefone em 22 de fevereiro deste ano, interceptado com autorização da Justiça e obtido com exclusividade pelo UOL.
Apontada como a responsável por receber e repassar bilhetes do crime organizado ao agente penal Docimar Pinheiro, Jessica foi presa preventivamente na terça-feira (15) em uma operação para cumprir mandados expedidos pela Justiça contra os 24 envolvidos em um esquema com crimes de corrupção, organização criminosa, lavagem de dinheiro e associação para o tráfico.
Docimar foi flagrado por câmeras de segurança do presídio federal de Catanduvas (PR) enquanto entregava esses bilhetes aos chefões do CV. Entre eles, Fabiano Atanásio da Silva, o FB, acusado de ser o principal responsável pela ação atrás das grades. Imagens mostram ainda um detento lendo um bilhete para Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, apontado como o principal chefão da facção criminosa.
'Esse negócio de Comando Vermelho é muito sério'
Em conversa por telefone com uma amiga, interceptada pela Polícia Federal com autorização da Justiça, Jessica fala abertamente sobre o seu envolvimento com o tráfico de drogas, citando a facção. "Mana, esse negócio de Comando Vermelho é muito sério", desabafou, em diálogo também em 22 de fevereiro. O nome da amiga de Jessica foi preservado, já que ela não consta na lista de investigados.
Em seguida, Jessica cita outra pessoa apontada como envolvida no esquema: Marcela Vasconcelos Souza Lima, "gerente operacional" do traficante FB, segundo o inquérito. Segundo o diálogo, foi para ela que Jessica fez o pedido de aumento da remuneração paga pelo tráfico.
Mana, eu mandei mensagem pra Marcela. Eu tava conversando ela que eu queria um aumento no bacalhau [gíria para pagamento]. Só que o pessoal não dá, não (...). Mandei mensagem pra tia, porque essa semana ela falou que ia chegar o dinheiro. Tô esperando ela me responder
Jessica Ribeiro Pinto, em conversa por telefone interceptada pela Justiça
Jessica então desabafa e fala dos seus planos para se desvincular do envolvimento com o tráfico no Rio de Janeiro após pagar dívidas.
"Eu conversei tanto com Deus que seu pagasse essas dívida [sic], ia me livrar. Eu não queria nem saber mais de 'corre' do Rio, de nada. Ia dar um jeito de trabalhar. Parece que o inimigo escutou. Ele tá trabalhando pra dívida não ser paga", disse. "Ai, mana... Se você arrumasse um emprego, ia ser ótimo", respondeu a amiga.
'Madrinha' do crime
Em outra conversa ocorrida em 21 de fevereiro —um dia antes do relato sobre o pedido de aumento feito por Jessica— ela recebeu a ligação de uma mulher que a chama de "madrinha", termo para designar "padrinhos de batismo nas facções", segundo a PF.
No diálogo, a mulher, que teve o nome preservado pela reportagem por não estar na lista dos investigados, diz não ser responsável pelo que seria uma carga de cocaína, segundo as investigações.
"Oi, madrinha (...). A senhora lembra o pó que o padre [possivelmente apelido de um traficante, segundo as investigações] deu para a minha irmã? Foi entre minha irmã e ele, eu não tava no meio", disse. "Eu nem peguei nesse pó", completou.
Tiros e morte em favela do Rio
A investigação ainda revela conversas sobre tiros em uma favela do Rio de Janeiro, morte de um "soldado do tráfico" com menos de 18 anos e uma carta endereçada a Fabiano Atanásio, o FB.
Após uma conversa, interceptada pela Justiça, entre Marcela e Leandro Pinheiro de Oliveira, que também atuava a mando de FB na gestão do tráfico no Rio de Janeiro, a Polícia Federal teve acesso a um áudio no qual um homem apontado pela investigação como gerente de um ponto de venda de drogas diz ter dado tiros. O homem narra o que parece ter sido um confronto no local, que teria causado a morte de um adolescente envolvido com a facção.
É... Os caras passaram a parte do morro. Rapaziada tava por aqui pelas torres, entendeu? Tranquilo. Graças a Deus. Só um menor mesmo [morreu no confronto]. Mas aí, dei tiro pra tia ver lá pra saia. Vamos ver, né.
O áudio foi reproduzido por Leandro para Marcela e foi possível ouvi-lo "em som ambiente", segundo descreve a PF no inquérito, que não revela a data em que ocorreu a conversa.
Carta ao chefão
A PF identificou um email escrito por Marcela e destinado a FB. Não é possível identificar a data do texto ou se o conteúdo foi encaminhado em um dos bilhetes levados pelo agente penal Docimar Pinheiro ao presídio federal de Catanduvas (PR).
Na mensagem, é possível perceber a intimidade entre ela e o traficante, a quem Marcela se refere como "cumpadre" [sic]. A grafia original do texto foi mantida pela reportagem.
"Meu cumpadre espero que quando vc receber este telegrama vc se encontre com saúde e paz no coração. Sei que o que vc tá passando não é fácil é muito difícil, se decepcionar com uma pessoa que você era capaz de dar a vida por ela. Sei que vc sente muita falta [cita o nome dos filhos de FB]. E para completar está nesse lugar horrível, se sentindo impotente de resolver suas coisas", escreveu, no começo do texto.
"Uma vez por semana vou sempre aqui numa igreja onde moro e estou sempre orando por você", continua, em um dos trechos da carta endereçada ao traficante.
O que dizem os investigados
Procurados, os representantes de Docimar e Jessica não foram localizados para se posicionar sobre o caso. A advogada Paloma Gurgel, que representa Marcinho VP, nega as acusações. "Em nenhum momento foi demonstrado pelas provas anexas nos autos que ele era o destinatário ou emitente dos bilhetes", disse.
A defesa de Fabiano Atanásio da Silva e dos outros integrantes da cúpula do CV apontados como integrantes do esquema pela PF não se manifestaram.
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