É hora de "zerar" a política global

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov

  • AP Photo

    O presidente russo Dimitri Medvedev

    O presidente russo Dimitri Medvedev

Tanto na Rússia quanto nos Estados Unidos, a “zeragem” das relações entre os dois países, algo quanto ao qual os líderes das duas nações se comprometeram mais de 18 meses atrás, está sendo agora avaliada. Algumas pessoas, muitas vezes por razões relativas a políticas internas, estão procurando menosprezar qualquer realização nesse sentido. Outros estão questionando se teve início de fato um novo estágio nessas relações, ou se isto não seria apenas mais uma oscilação do pêndulo em uma direção positiva, à qual se seguiria inevitavelmente uma oscilação negativa.

Ao avaliarmos em que estágio nos encontramos atualmente, é útil examinar a história das nossas relações. E ainda mais importante, nós temos que considerar essas relações em um contexto mais amplo, como parte das mudanças ocorridas no nosso mundo globalizado.

No início da década de noventa, as expectativas russas de cooperação com os Estados Unidos eram muito grandes, e o clima era de euforia. Parte daquela euforia baseava-se em ilusões e em uma visão idealizada dos Estados Unidos – uma sensação que era particularmente generalizada entre a intelligentsia russa. Porém, aquelas expectativas refletiam também uma crença coerente em que as nossas nações pudessem de fato elaborar um grande acordo em conjunto, tanto por interesses próprios quanto para o benefício global.

Mas a euforia logo deu lugar à desilusão. Mais tarde, ainda naquela década, quando a economia russa foi prejudicada por reformas ineptas e enquanto milhões de russos viam-se mergulhando na pobreza, os Estados Unidos aplaudiam os líderes russos. Muitos russos não podem deixar de indagar se o que os Estados Unidos desejavam era uma Rússia fraca e acuada.
Ainda na década de noventa, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi expandida, enquanto os Estados Unidos proclamavam a sua vitória na Guerra Fria e as suas intenções de manter uma superioridade militar.

Assim sendo, qual foi o valor da promessa feita pelo presidente Ronald Reagan na reunião de cúpula de Genebra, em 1985, quando ele se juntou a mim na declaração solene de que as nossas nações não buscariam alcançar superioridade militar? E como uma relação de confiança poderia ser construída sobre as bases estabelecidas na década de noventa?

O período em que os Estados Unidos puderam considerar-se a única superpotência restante, e até mesmo uma “hiperpotência”, capaz de criar um novo tipo de império, acabou se mostrando relativamente curto. A crise financeira global – que, desta vez, começou no próprio Estados Unidos, e não em países periféricos – estimulou o processo de realinhamento global favorável a novos centros de poder e influência. Os Estados Unidos tiveram que ajustar-se a essa mudança, algo que não é nada fácil.

A proposta de “zerar” as relações com a Rússia reflete o reconhecimento de que a política anterior fracassou. Ela também reconhece o grande potencial para uma parceria entre as duas nações. No entanto, as objeções emergiram já no início. Os críticos enfatizaram que os nossos países são demasiadamente diferentes para serem capazes de construir uma relação sustentável e “orgânica” de longo prazo. Além do mais, tanto na Rússia quanto nos Estados Unidos ficou claro que algumas pessoas ainda acreditam que os nossos países são potenciais adversários.

Nem a Rússia nem os Estados Unidos são capazes de suportar um outro confronto. Embora bastante diferentes, as duas nações estão passando por uma transição. Elas estão tentando construir uma relação nova, e muitas vezes imprevisível, com as potências emergentes. A União Europeia, também, enfrenta esse desafio – desafio este que tornou-se ainda mais difícil devido aos problemas derivados de uma expansão apressada e da integração monetária da União Europeia.

A área intercontinental de Vancouver a Vladivostok enfrenta diversos problemas similares, e muitos interesses comuns estão emergindo. Forças poderosas de atração mútua também precisam emergir. A “zeragem” das relações Estados Unidos-Rússia e a declarada “parceria para modernização” entre os dois países deveria marcar o início da rota rumo a uma nova comunidade intercontinental. Somente trabalhando em conjunto os Estados Unidos, a Europa e a Rússia poderão assegurar uma posição de liderança e influência em um mundo globalizado no qual as mudanças ocorrem com rapidez.

Estaria eu propondo a criação de uma “associação do norte” como contrapeso ao “sul”, ao mundo islâmico e talvez à China? De forma alguma.

Tal plano seria uma receita para um conflito real, e não hipotético, de civilizações – algo que no mundo atual é totalmente inaceitável. Nas relações com outros países, nós precisamos buscar sempre a cooperação, a solução conjunta de problemas e formas de superar dificuldades – tanto os problemas e dificuldades que já surgiram quanto aqueles que ainda estão por surgir.

O mundo muçulmano, cuja presença vem sendo sentida não só fora, mas também dentro da Europa e dos Estados Unidos, está enfrentando o desafio de adaptar-se à era moderna, enquanto tenta ao mesmo tempo proteger a sua identidade cultural e a sua civilização únicas. Como parte desse processo doloroso, as tendências extremistas dentro do islamismo são combatidas por tendências moderadas e regimes que não são avessos à modernização e que estão prontos a dialogar. Uma comunidade de civilizações compartilhada, com raízes culturais comuns e experiências diversificadas interagindo com o mundo islâmico, precisa fazer parte de um tal diálogo.

E tal comunidade poderia desempenhar um papel igualmente importante em um diálogo com a China.

A importância política da China sem dúvida alguma aumentará com a sua população e o seu poder econômico. Isso representará um sério desafio, tanto para a comunidade internacional quanto para a China, especialmente ao se levar em conta que a evolução histórica de qualquer nação nem sempre é linear. Existem encruzilhadas na estrada, ocasiões em que é necessário tomar decisões difíceis. Cedo ou tarde a China deparar-se-á com a necessidade de fazer uma escolha política – ou, para chamar as coisas pelos seus nomes, com o problema da democracia. Compromissos e cooperação com uma grande nação que transformou-se não apenas na “fábrica do mundo”, mas também em um gigantesco “laboratório” econômico e político, será uma outra tarefa fundamental a ser desempenhada pela comunidade internacional que eu estou propondo.

Não se sabe como essa comunidade emergirá nem qual será o seu formato final. O que está claro é que nós precisamos começar pela construção de uma arquitetura de segurança durável, primeiramente, e sobretudo, na Europa, com os Estados Unidos e a Rússia como parceiros. Recentes declarações dos Estados Unidos relativas às suas políticas indicam que finalmente até os líderes norte-americanos reconhecem que a segurança não é algo que se possa alcançar unilateralmente; ela exige parcerias.

A proposta do presidente russo Dmitry Medvedev de concluir um tratado de segurança pan-europeu aplica-se à mesma área geográfica, estendendo-se da América do Norte à Europa e a toda a Rússia.

Eu estou convencido de que no futuro uma associação intercontinental de nações com um destino comum emergirá. As grandes metas podem parecer demasiadamente ambiciosas ou abstratas, especialmente em um momento em que a Rússia e os Estados Unidos não conseguem concordar sequer quanto à questão dos frangos importados, apesar do compromisso público de fomentarem uma nova relação, e quando a União Europeia ainda nega vistos de viagem aos cidadãos russos.

Mas eu estou convencido de que a minha proposta não é apenas uma esperança fantástica. A magnitude das mudanças globais é tão vasta, e o potencial para a contribuição das nações situadas no espaço intercontinental em que se encontram a Rússia, a Europa e a América do Norte é tão enorme que a associação estreita desses países deveria ser tida como imperativa. Nós precisamos nos deslocar do campo da “zeragem” e da parceria em direção a uma reconfiguração das relações políticas globais.

Tradutor: UOL

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov foi o último presidente da extinta União Soviética e um dos responsáveis pelo fim da guerra fria. Ambientalista, Gorbachov já foi agraciado com o prêmio Nobel da paz.

UOL Cursos Online

Todos os cursos