Regimes autoritários: o Egito está chamando

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov

  • Facundo Arrizabalaga/EFE - 12.fev.2011

    Milhares de pessoas comemoram a queda do presidente do Egito com máscaras de Mubarak na praça Trafalgar, em Londres (Reino Unido), em ato organizado pela Anistia Internacional

    Milhares de pessoas comemoram a queda do presidente do Egito com máscaras de Mubarak na praça Trafalgar, em Londres (Reino Unido), em ato organizado pela Anistia Internacional

Os egípcios embarcaram em um processo de mudança. Primeiro na Tunísia e agora no Egito as pessoas falaram e deixaram claro que não desejam viver sob um regime autoritário e que não aguentam mais regimes que se mantêm no poder por várias décadas.

No fim das contas, a voz do povo será decisiva. As elites árabes, os países vizinhos do Egito e as potências mundiais deveriam entender isso e levar este fator em consideração nos seus cálculos políticos.

Os acontecimentos que ora se desenrolam terão consequências bem maiores para o próprio Egito, para o Oriente Médio e para o mundo árabe.

Mas muita ansiedade tem vindo à tona nos comentários feitos por políticos e pela mídia. Muita gente manifesta o temor de que o movimento popular possa conduzir ao caos e, depois disso, a uma reação fundamentalista e ao confronto entre o mundo islâmico e a comunidade internacional. Por trás desses medos existe uma desconfiança em relação ao povo egípcio e às outras nações árabes.

Durante muito tempo, o pensamento político convencional sobre o mundo árabe baseou-se em uma falsa dicotomia: regimes autoritários ou fundamentalismo, extremismo, terrorismo. Os líderes desses regimes também pareciam acreditar nos seus papeis de guardiães da estabilidade. Atrás da fachada, entretanto, vários problemas sociais e econômicos graves iam se acumulando. Economias estagnadas, corrupção generalizada, a desigualdade crescente entre ricos e pobres e uma vida de frustração para milhões de jovens alimentaram a convulsão social.

O Egito é o país-chave no Oriente Médio e no mundo árabe. O seu desenvolvimento estável é algo que interessa a todos. Mas estabilidade significaria viver sob um estado perpétuo de emergência, que durante quase três décadas “suspendeu” todos os direitos e liberdades e deu ao executivo poderes ilimitados, uma licença para governar arbitrariamente?

As pessoas que lotaram a Praça Tahrir no Cairo e as ruas de outras cidades egípcias queriam o fim dessa farsa. Eu tenho certeza de que a maioria delas detesta igualmente o autoritarismo e o extremismo, seja este religioso ou de qualquer outra modalidade.

Ao anunciar a sua decisão de não disputar outro mandato presidencial, Hosni Mubarak reconheceu de fato que os problemas do país não podiam mais ser resolvidos dentro dos parâmetros do antigo sistema. Assim como em todos os outros lugares, no mundo árabe, com a sua história tortuosa, sua cultura única e os seus numerosos riscos e perigos, a única maneira de seguir à frente é em direção à democracia, com a compreensão de que a rota é difícil e que a democracia não é nenhuma varinha de condão.

Mubarak poderia ter desempenhando um papel na difícil transição. Mas não foi isso o que aconteceu.

Mubarak deu uma contribuição inegável para a busca por uma solução pacífica para o conflito do Oriente Médio, e ele conta com os seus apoiadores no Egito. Eu já mantive reuniões com ele, e sei que se trata de um homem de caráter forte e que tem força de vontade. Mas a maioria dos egípcios viu o processo de transição anunciado por ele como simplesmente uma tentativa de ganhar tempo. O Supremo Tribunal Militar, para o qual o poder foi delegado após a renúncia presidencial, têm que manter isso em mente.

A equação a ser resolvida no Egito e em outros países do leste árabe possui muitas variáveis desconhecidas. A mais imprevisível é o papel do fator islâmico. Qual é o lugar ocupado por ele no movimento popular? Que tipo de islamismo emergirá? No próprio Egito, os grupos islâmicos têm até o momento se comportado com moderação, mas fora do país alguns pronunciamentos irresponsáveis e provocadores foram feitos.

Seria um erro enxergar o islamismo como uma força destrutiva. A história da cultura islâmica inclui períodos durante os quais ela foi um fator de liderança no desenvolvimento da civilização mundial. As suas contribuições à ciência, à educação e à literatura não podem ser negadas. Doutrinas muçulmanas defendem energicamente a justiça social e a paz. Um islamismo que enfatize tais valores poderá ter um grande potencial. Processos democráticos e realizações socioeconômicas genuínas em países como a Turquia, a Indonésia e a Malásia já oferecem motivos para otimismo.

Todos os envolvidos na transição egípcia precisam agora comportar-se com a maior responsabilidade possível e demonstrar um senso de julgamento e de ação equilibrado. As lições a serem aprendidas com os acontecimentos no Egito dizem respeito a muito mais do que o mundo árabe.

Regimes similares existem em praticamente todos os lugares. As suas idades e origens diferem. Alguns resultaram de retrocessos que se seguiram a revoluções democráticas populares. Outros se firmaram devido a um ambiente comercial favorável e aos altos preços de commodities. Muitos se concentraram em apressar o desenvolvimento econômico, muitas vezes com sucesso. Em um determinado momento, muitos observadores concluíram que esses regimes e as suas populações fizeram um acordo: crescimento econômico em troca da liberdade e dos direitos humanos.

Todos esses regimes exibem uma falha séria: a lacuna entre governo e povo, a falta de prestação de contas, algo que cedo ou tarde leva a um poder descontrolado e que não responde a ninguém por seus atos.

Os líderes de tais regimes receberam uma advertência. Eles podem continuar a se persuadir de que os seus casos particulares são diferentes e que têm a situação “sob controle”. Mas eles provavelmente questionam até que ponto esse controle é sustentável. No fundo, eles devem entender que tal situação não pode durar para sempre, porque grande parte desse controle não passa de mera formalidade.

Assim, surge a pergunta inevitável: O que virá a seguir? Continuar com os rituais de uma democracia falsificada, que invariavelmente proporciona ao grupo dominante entre 80% e 90% dos votos? Ou, talvez, buscar uma transição para a democracia genuína?

Essa é uma escolha muito difícil, e a segunda alternativa é assustadora. Ela significa garantir que haja uma oposição de verdade, ainda que se saiba que uma oposição real cedo ou tarde chegará ao poder. Depois disso, os abusos serão descobertos, as redes de corrupção que vão até o topo da estrutura de poder serão rompidas, e alguém terá que ser responsabilizado por tudo isso. Seria essa uma perspectiva que um regime autoritário gostaria de contemplar?
É preciso armar-se da coragem para a mudança real, porque o poder sem prestação de contas não pode durar. Foi isso o que centenas de milhares de cidadãos egípcios, cujas faces nós vimos na televisão, disseram em voz alta e clara.

Ao olharmos para tais faces, sentimos a vontade de acreditar que a transição democrática no Egito terá sucesso. Que o país será um bom exemplo, um exemplo do qual o mundo inteiro necessita.

Tradutor: UOL

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov foi o último presidente da extinta União Soviética e um dos responsáveis pelo fim da guerra fria. Ambientalista, Gorbachov já foi agraciado com o prêmio Nobel da paz.

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