Presidente Medvedev, a Rússia precisa de uma nova agenda

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov

Enquanto eu acompanhava as discussões sobre o pronunciamento anual ao Parlamento russo feito pelo presidente Dmitri Medvedev, uma ideia me pareceu especialmente pertinente: há muitas coisas importantes e necessárias no discurso do presidente, mas tem-se a impressão de que ele estaria sendo dirigido a um país mais confortável, que estivesse vivendo em uma época mais confortável.

No entanto, mais do que nos detalhes do discurso, estive pensando no próximo ano. Ano que vem será um ano de pré-eleições na Rússia, e ele promete ser ainda mais importante do que as próprias eleições.

Ignoradas por muitos e negadas por alguns – aqueles que são contra mudanças e aqueles que veem a Rússia como “irremediavelmente autoritária” e incapaz de se tornar democrática  – , mudanças têm surgido na sociedade russa, e elas podem ter sérias consequências para a sua política: logo, 2011 deverá ser o ano em que será moldada uma nova agenda para a Rússia. A antiga, de estabilização, já se esgotou.

Em 2000, a prioridade máxima era proteger a integridade do país e restaurar a governança. O povo apoiava o presidente Vladimir Putin, que estabeleceu essas metas. Os meios que ele usou e o grau de sucesso podem ser discutíveis, mas de forma geral as metas foram atingidas.

Porém, com o tempo os problemas não resolvidos foram se tornando cada vez mais óbvios. A crise econômica mundial piorou nossos problemas, mas ela não era sua raiz.

Não era culpa da crise o fato de que estávamos perdendo o ritmo do processo democrático, ou de que estávamos presos a um modelo econômico ineficiente e baseado em recursos, incapazes de deter o processo da desindustrialização. Estávamos basicamente dividindo o bolo, em vez de produzir, construir ou cultivar. Tampouco era a crise a causa da corrupção que penetrou todos os níveis da burocracia e estava devastando nossa sociedade.

Estivemos vivendo da receita do petróleo e do gás, parecendo nos esquecer de que esses recursos não são renováveis. Mesmo quando as condições do mercado mundial eram favoráveis, milhões de pessoas na Rússia ainda viviam na pobreza.

A agenda antiga não atendeu às questões mais urgentes que a Rússia enfrenta hoje em dia. Por quê? Tudo se resume a política. Precisamos de um ambiente democrático competitivo; precisamos de fontes de inovação em todos os níveis; precisamos de uma sociedade civil ativa e de verdadeira responsabilidade governamental. Se essas condições estiverem presentes, até os problemas mais intratáveis podem ser resolvidos.

No entanto, desde 2005 ou 2006, o governo tem tomado decisões que restringem uma movimentação progressiva, e dificultam ou até impossibilitam a abordagem de problemas mais delicados.

Líderes regionais não são mais eleitos; as eleições individuais foram substituídas por “listas de partidos”; foram erguidos limiares para que partidos fossem representados no Parlamento, enquanto o quórum mínimo requerido para validar as eleições foi abolido.

O que piorou ainda mais as coisas foi o uso descarado de “recursos administrativos”, ou seja, manipulações eleitorais e pressão sobre a imprensa.

Resultado? Canais de comunicação entre governo e população foram obstruídos, e a elite política foi se isolando cada vez mais, ao servirem seus próprios interesses. Cada vez mais pessoas começaram a ver o governo como uma ferramenta nas mãos de alguns poucos que buscavam ganho pessoal e dominação – um processo perigoso, no qual as autoridades perdem o respeito do povo.

No verão passado, os sintomas do isolamento do governo em relação à sociedade e de sua indiferença aos sinais vindos de baixo começaram a adquirir proporções ameaçadoras. Algo além estava acontecendo: o povo começou a ficar cada vez mais exigente, ciente de seus interesses, e capaz de defendê-los. Embora as tradições de organizações de pessoas comuns não sejam muito profundas ou fortes em nossa sociedade, começamos a andar nessa direção. Na linha de frente estão ativistas de grupos da sociedade civil, jornalistas, ambientalistas e pessoas que sofreram nas mãos de oficiais corruptos.

As autoridades prestaram atenção. Um sinal importante foi a decisão do presidente Medvedev de suspender a construção de uma estrada que atravessaria a floresta de Khimki. Por muitos meses, Moscou e autoridades federais ignoraram de forma patente os protestos contra a construção. A decisão do presidente foi um sinal de que tal desdém pelo povo é inaceitável.

Pouco depois, entretanto, vimos como a burocracia tentou transformar as audiências públicas sobre a questão em uma paródia do processo que dá voz ao povo. Esse é um exemplo da intensa luta que está em curso entre tendências democráticas e antidemocráticas. Se a tendência antidemocrática não for revertida, todos os ganhos dos anos anteriores – não só o processo democrático, mas até a tão louvada estabilidade – estarão em risco.

Foi provavelmente por isso que o presidente Medvedev sentiu que deveria se pronunciar. Em seu blog, no dia 23 de novembro, uma semana antes de falar ao Parlamento, ele escreveu: “Não é nenhum segredo que, já há algum tempo temos visto sintomas de letargia em nossa política, e que surgiu um risco de que a estabilidade esteja se degenerando em um fator de estagnação”.

Para muitos, as observações do presidente foram uma surpresa. Ele não só fez menção a “certas deficiências”, como também demonstrou uma consciência dos problemas políticos no cerne dos males do país: a degradação do partido governante e a falta de qualquer provisão para a minoria política afirmar seus direitos.

O presidente também listou alguns passos que foram tomados para tornar o sistema político mais justo e competitivo. Da forma como eu vejo, esses passos são insuficientes e inadequados para a urgência da situação. Mas o fato de o presidente ter identificado o desafio foi de fundamental importância, e foi encorajador para aqueles que se importam com o futuro da Rússia. Eles esperavam que ele fosse usar seu pronunciamento anual para a Assembleia Federal, o parlamento da Rússia, para falar sobre suas preocupações de forma mais concreta. Ele não aproveitou a oportunidade.

O discurso do presidente Medvedev contém elementos que certamente deverão fazer parte da nova agenda russa. Sua ênfase em políticas sociais e na restrição da burocracia é bem-vinda.

Mas sem um contexto político claro, o discurso soava mais como uma lista de avaliações, tarefas e sugestões dirigidas à mesma “elite” russa que já se mostrou inerte e inepta. Em sua forma atual, nossa elite é uma assembleia de indicados que não são capazes de definir uma nova agenda, muito menos de implementá-la.

O presidente deve reafirmar que sua declaração do dia 23 de novembro continua válida. Na verdade, é um passo na direção de uma nova agenda russa que deve incluir, como seu primeiro item, a retomada e a aceleração de nosso movimento na direção de uma democracia real e efetiva.

Ele deveria encontrar um meio de certificar as pessoas de que o que ele escreveu em seu blog não foi um acidente ou um lapso, mas sim um passo sério que reflete suas próprias prioridades – prioridades pelas quais ele está disposto a lutar. Isso criaria uma nova atmosfera para discutir todos os problemas que estamos enfrentando.

Entre eles, a educação é decisiva. Chegamos a um ponto em que o princípio constitucional de acesso universal à educação pode se tornar letra morta. As pessoas estão pensando: como é possível que, após a Segunda Guerra Mundial, quando o país estava em ruínas e começando a se reerguer, o governo tenha conseguido financiar educação gratuita, ao passo que agora o Estado russo não tem o dinheiro para isso? No entanto, o Parlamento parece pensar que a educação é de pouca importância.

Existe outra prioridade, que eu já mencionei: as pessoas estão pedindo por mecanismos efetivos de combate à corrupção, que é um problema cada vez mais político, ampliando o abismo entre as autoridades e o povo.

A elite atual não consegue resolver isso, ou não quer, o que afinal dá no mesmo. Para fazer decolar, o presidente precisa tomar a iniciativa, com apoio da sociedade civil e forças políticas novas e mais corajosas.

A nova agenda também deveria conter um forte componente econômico. O que temos agora equivale a um gerenciamento pós-crise, tapando buracos no orçamento e lançando iniciativas separadas em algumas áreas onde o sucesso é incerto. Precisamos de um avanço: um movimento na direção de uma moderna economia do conhecimento e de um desenvolvimento sustentável. Vejo aqui um elo direto com o problema da educação.

Estou convencido de que o presidente Medvedev deveria tomar a dianteira na definição da nova agenda para a Rússia. O povo o apoiará.

Tradutor: Lana Lim

Mikhail Gorbachov

Mikhail Gorbachov foi o último presidente da extinta União Soviética e um dos responsáveis pelo fim da guerra fria. Ambientalista, Gorbachov já foi agraciado com o prêmio Nobel da paz.

UOL Cursos Online

Todos os cursos