Amanda Cotrim

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Argentinos se desesperam com o fim da lei de aluguel: 'como vamos viver?'

"Querem me desalojar de onde eu vivo há 15 anos. Como vou deixar o bairro onde tenho minha identidade?", disse emocionada a aposentada Susana Garcia, 79, enquanto segurava o microfone e denunciava a angústia que está vivendo por não saber onde vai morar no mês que vem.

Com o super Decreto de Necessidade e Urgência, criado pelo presidente Javier Milei, vigente desde 29 de dezembro de 2023, diversas leis argentinas foram revogadas.

Entre elas a lei de aluguel, que estipulava que o proprietário de um imóvel poderia exigir até duas garantias para fazer a locação, entre cinco previstas na lei: título de propriedade de um imóvel, aval bancário, seguro de caução, garantia de fiança, holerites. Também era permitido pedir um depósito de, no máximo, cinco vezes o valor do aluguel.

A lei de aluguel havia sido aprovada em 2020 e passado por reformulações em outubro de 2023, antes de ser revogada pelo Decreto de Milei. Estabelecia que os contratos fossem em peso argentino, de no mínimo três anos e de no máximo de 20 anos, com reajuste anual, conforme o Índice de Preços do Consumidor; a comissão imobiliária era de responsabilidade do dono do imóvel.

Os proprietários criticavam principalmente o tempo de reajuste do aluguel, uma vez que a Argentina vive há anos uma inflação galopante. Atualmente, o país registra 211% de inflação anual.

Agora, com a revogação da lei do aluguel, os contratos estão sendo tratados no caso a caso — conforme as regras e as exigências estabelecidas pelos próprios donos dos imóveis, como apurou o UOL.

Na sexta-feira (19), no centro de Buenos Aires, dezenas de inquilinos se reuniram em um ato para defender a lei de aluguel. "A rua é o único lugar de luta", disse um morador referindo-se à paralisação geral prevista para 24 de janeiro contra as reformas econômicas de Milei.

Segundo o movimento de moradia Inquilinos Agrupados, um dos mais importantes da Argentina, atualmente só a cidade de Buenos Aires tem 300 mil apartamentos vazios. Já os dados oficiais mais atualizados do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Econômico, Social e Urbano de Buenos Aires apontam que em 2023 a cidade tinha 200 mil imóveis vazios.

Suzana recebe uma aposentadoria de 180 mil pesos (equivalente a R$ 720 no câmbio paralelo) e paga 70 mil pesos de aluguel (aproximadamente R$ 280). Com o fim de seu contrato em fevereiro, ela não sabe onde vai viver.

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Vão me desalojar, porque eu não tenho como pagar os preços que estão cobrando. Como vamos viver?

Jovem chora ao relatar dificuldades para viver na Argentina e alugar um imóvel
Jovem chora ao relatar dificuldades para viver na Argentina e alugar um imóvel Imagem: Amanda Cotrim/UOL

Para o porta-voz do movimento Inquilinos Agrupados, Gervasio Munoz, "sem uma lei de aluguel, a Argentina se tornará o primeiro país no mundo a não ter uma regulamentação sobre moradia".

Munoz afirmou ao UOL que, desde a revogação da lei de aluguel, o grupo tem recebido milhares de denúncias sobre assédio moral de proprietários, que, segundo ele, fazem uma tortura psicológica para pressionar o morador a aceitar as condições de um contrato que não está mais balizado por uma lei.

A crise imobiliária na Argentina é antiga. Antes de Javier Milei assumir no dia 10 de dezembro, diversas cidades, como Buenos Aires, Rosário e Bariloche, registraram aumento de contratos realizados fora da lei de aluguéis, cobrados em dólar, uma espécie de efeito Airbnb dos contratos.

Um estudo do Mercado Livre de 2023 apontou que mais de 50% dos anúncios na plataforma exigiam que o pagamento fosse na moeda americana. Com o fim da lei, contudo, essa realidade estará normalizada, afirmou Munoz.

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O presidente Javier Milei disse em diversas oportunidades que revogar a lei de aluguel era uma iniciativa para simplificar a relação entre proprietário e inquilino e dar, em suas palavras, liberdade para ambos.

Um contrato sem critério

Dezenas de inquilinos se reuniram em um ato para defender a lei de aluguel na Argentina
Dezenas de inquilinos se reuniram em um ato para defender a lei de aluguel na Argentina Imagem: Amanda Cotrim/UOL

No entanto, conforme apuração do UOL, na prática, o que se vê são exigências mais rígidas para poder alugar um imóvel, cobrança em moeda estrangeira, contratos sem prazo mínimo, reajustes que não acompanham aumentos de salários e exigências sem limites.

Em sites de anúncios imobiliários, os requisitos para alugar são variados e ilimitados, como fiador, imóvel de algum parente direto, holerite com valor de três vezes o aluguel, depósito de até seis meses, seguro fiança de três vezes o valor do aluguel (esse seguro não é devolvido ao final do contrato). Antes, com a lei, havia um critério sobre as exigências das garantias. Sem a lei, elas se multiplicaram.

Sem a lei, os pagamentos podem ser pedidos em qualquer moeda e os contratos podem ser assinados por qualquer período, sem prazo mínimo.

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Os reajustes também podem ser de acordo com os critérios de cada proprietário. Inquilinos denunciam que alguns contratos estão sendo redigidos com reajustes de até 2 meses, com índices econômicos variados, como é o caso da professora Romina Mamani, 43, que mora com o filho de 15 anos, no bairro de San Telmo, em Buenos Aires.

Ela tem um salário de 700 mil pesos (2800 reais) e contou que pagou em dezembro de 2023 70 mil pesos de aluguel (280 reais). Mas para renovar o contrato, sem a lei, a partir de fevereiro, o valor será de 250 mil pesos (mil reais), com reajustes trimestrais, honorários imobiliários, além de ter que pagar taxas que antes eram de responsabilidade do dono.

"Não temos direito a nada", disse emocionada ao UOL.

É desesperador. Eu posso reduzir as refeições, comer menos no dia. Mas não tenho como não pagar um aluguel. Porque eu preciso de um teto para morar.

A Argentina teve o primeiro contrato de aluguel em criptomoeda

O caso aconteceu na cidade de Rosario, a 300 km da capital Buenos Aires. O contrato foi firmado com pagamento em criptomoeda a um preço fixo. No entanto, ter a acesso a qualquer moeda que não seja o peso não é a realidade da maioria dos argentinos que recebe em moeda local.

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