Amanda Cotrim

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Reportagem

'Na Argentina não há negros': como país encarou cantos racistas na seleção

No país do presidente autodeclarado libertário, a liberdade de expressão parece ter encontrado um limite. Javier Milei demitiu na quarta-feira (17) o subsecretário de esportes, Júlio Garro, por ele ter dito, em entrevista a uma rádio local, que o craque Messi e a AFA (Associação de Futebol Argentino) deveriam se desculpar pelos cânticos racistas destinados a jogadores franceses.

Em nota, o escritório da presidência afirmou que "nenhum governo pode dizer o que a seleção Argentina, atual campeã do mundo e bicampeã da Copa América, deve dizer ou pensar".

A demissão caiu como uma bomba na Argentina. Mas a discussão maior entre os hermanos foi se os jogadores da seleção eram "realmente" racistas ou o mundo que não entendia o humor do futebol argentino. Afinal, tudo não teria passado de uma brincadeira, que "faz parte do jogo" e que o meio-campista Enzo Fernández "não teve a intenção de ofender".

Comentaristas sugeriram que Enzo não deveria ter pedido desculpas porque não teve a intenção de ser racista.

Na Argentina, racismo é invisível

O debate sobre o racismo caminha devagar entre os argentinos, principalmente em comparação a países como Brasil e os EUA. Quando episódios racistas envolvendo jogadores de futebol vêm a público, o tema ganha as páginas de jornais e inflama as redes sociais, mas quase sempre a discussão não avança.

"O racismo se resume a um assunto individual, sobre a redutora reflexão se a pessoa teve ou não teve a intenção, e não se reconhece que o racismo é um problema estrutural", explica Maga Perez, da Associação Misibamba da Comunidade Afroargentina de Buenos Aires.

A falta de discussão séria sobre a questão impede avanços em políticas públicas de combate ao racismo e de promoção de uma identidade nacional que reconheça as origens africanas e indígenas.
Maga Perez, do movimento negro na Argentina

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Em Buenos Aires, é comum escutar dos argentinos que eles não são racistas. A justificativa é que no país praticamente não há negros.

Para Mega, esse argumento enfraquece o combate ao racismo porque minimiza o preconceito contra outros povos, como os indígenas e imigrantes vítimas de discriminação social. "A luta racial não pode ser dividida, porque essa divisão segue sem reconhecer os racismos contra os povos indígenas e afrodescendentes", opina a ativista.

Os dados do último censo argentino de 2022 apontaram que 302.936 pessoas se reconhecem como negras, em um país de 40 milhões de habitantes —menos de 1%. Esse número também revela a dificuldade que parte da população tem para reconhecer suas origens.

Não por acaso é tão comum escutar que na 'Argentina não existem negros', assim como dizer que 'já não existem indígenas', ou ainda que 'a Argentina é a Europa da América Latina'. Nós, afrodescendentes, fomos ficando apartados.
Maga Perez, do movimento negro na Argentina

Racismo precisa ser reconhecido

Para que o racismo seja combatido, ele precisa ser reconhecido, diz Javier Bundio, antropólogo argentino e especialista em futebol e racismo.

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Na opinião de Bundio, esse reconhecimento passa por investigar a própria história da Argentina. São frequentes casos de racismo em jogos de times argentinos contra brasileiros.

"É fundamental recuperar nossa história, resgatar nossa memória. O Estado precisa se envolver, porque quando ele sai de cena incentiva o problema. Por isso é necessário ter políticas públicas claras que reconheçam o racismo na Argentina e, consequentemente, no futebol, ou nunca vamos resolver o problema", apontou Bundio.

Vi os jornais dizendo que Enzo não deveria ter pedido desculpas, porque não foi sua intenção ser racista. Isso é um erro. Quando a pessoa reconhece que ofendeu, tem que pedir desculpas. E devemos resgatar essa lição e levar às escolas.
Javier Bundio, antropólogo argentino

Ele ponderou que o episódio racista "não pode se tornar uma caça às bruxas". "Não é um problema individual, mas social."

O mito dos barcos europeus

No final do século 19, criou-se o mito de que os argentinos vieram da Europa. "Somos todos descendentes de italianos e espanhóis", dizem.

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No entanto, segundo o antropólogo, na época da colônia, "um em cada cinco argentinos era negro e havia uma grande proporção de indígenas ou descendentes".

"Com a presença dos imigrantes europeus no final do século 19, se constituiu um mito de que os argentinos vieram dos barcos da Europa", afirmou Bundio.

Para a ativista Maga, o reconhecimento sobre o racismo também passa por admitir que algumas instituições ajudaram a apagar parte da memória do país.

"A Argentina tem o mito de uma nação branca e europeia, por isso atravessamos tanta dificuldade para que algumas pessoas compreendam o racismo. A escola e os livros didáticos, que inviabilizaram o tema, tiveram muito a ver com esse pensamento", pondera.

Em 2013, a Argentina criou o Dia Nacional dos Afroargentinos e da Cultura Afro, celebrado em 8 de novembro —o que seria equivalente ao dia da Consciência Negra no Brasil.

Contudo, o debate sobre uma consciência racial ainda engatinha. "Falta muito para avançar [na luta contra o racismo] e, sinceramente, esse contexto político nacional e internacional, com a ascensão de partidos de ultradireita, não ajuda; pelo contrário, alimenta o negacionismo racial", ressalta Mega.

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Milei enfraqueceu órgão de combate ao racismo

O combate ao racismo no país perdeu força desde que Milei desarticulou o Instituto Contra a Discriminação, Xenofobia e o Racismo (Inadi), cuja função era fiscalizar e ser um braço do Estado na tarefa de combater atos discriminatórios. O governo Milei afirmou que o órgão era inútil e só servia para cabide de emprego.

Apesar de o Inadi não ter sido fechado totalmente, porque sua destituição precisa passar pelo Congresso, ele está abandonado.

"Quando o Inadi é desarticulado, o Estado perde a capacidade de intervir nos debates. O governo poderia ter feito uma reflexão sobre o caso (da seleção), ou seja, perguntar por que essa música que os jogadores cantaram é racista e a importância de pedir desculpas como fez o Enzo Fernández", comenta Bundio.

Segundo o antropólogo, uma parte do Inadi estava articulada com o esporte e isso, consequentemente, foi desmontado. Para o especialista, o fechamento do órgão terá como impacto o aumento dos discursos racistas.

"Desde então, o que vemos é um aumento dos discursos racistas e violentos nos estádios. Isso é consequência direta do Estado que se retira e não intervém na vida pública, incentivando o problema. Por isso, é necessário ter políticas públicas claras sobre o racismo na Argentina. Do contrário não poderemos resolver o problema", afirmou.

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Reação na política

A vice-presidente, Vitoria Villarruel, afirmou que "nenhum país colonialista amedrontará a Argentina por uma música de estádio de futebol e nem por dizer as verdades que outros não querem admitir".

A secretária-geral do governo argentino, Karina Milei, irmã do presidente, pediu desculpas pelas declarações da vice. O gabinete do líder ultraliberal explicou que considerou "muito importante" a ação da secretária-geral, pois os comentários de Villarruel foram "longe demais".

Villarruel ainda chamou os críticos de hipócritas e apoiou Enzo e Messi: "Estou com você, Enzo. Obrigada por tudo, Messi", escreveu a vice, em uma rede social.

Reação no futebol

Messi, que até o momento não se manifestou publicamente sobre o episódio racista envolvendo os seus companheiros de seleção, teria dito nos bastidores, logo após a conquista do bi, que "ninguém deve insultar ninguém; festejemos e desfrutemos o nosso [título]". Quem contou foi o seu companheiro de seleção, Rodrigo De Paul, em entrevista ao diário Olé, o maior jornal de esportes da Argentina.

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De Paul também minimizou o episódio e disse que existe "um pouco de malícia de querer colocar Enzo em um lugar que não tem nada a ver (...) O que eu posso dizer, em defesa de Enzo, é que as pessoas cantam essa canção, a música está aí, e não com maldade''.

Até o momento, grandes clubes argentinos, como Boca Juniors e River Plate, não se manifestaram sobre o episódio racista. A AFA foi procurada pela reportagem do UOL, mas até agora não atendeu a solicitação.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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