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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carnaval cancelado? Só para quem não pode pagar o acesso a festas privadas

Bell Marques é uma das atrações do Baile Barra Ondina, que acontece em um clube, no circuito do Carnaval, com ingressos até R$ 350 - Reprodução/Instagram @bellmarques
Bell Marques é uma das atrações do Baile Barra Ondina, que acontece em um clube, no circuito do Carnaval, com ingressos até R$ 350 Imagem: Reprodução/Instagram @bellmarques

Colunista do UOL

26/02/2022 04h00

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O Brasil, país que se orgulha em realizar a maior festa popular do mundo, terá neste Carnaval uma programação de eventos privados, pouco democráticos, para compensar o cancelamento da folia nas ruas por conta da pandemia do coronavírus.

O aumento dos casos de covid-19, principalmente pela variante ômicron, obrigou governos e prefeituras a cancelarem os carnavais nas ruas para evitar aglomerações e mais contaminação.

Em meio à euforia que toma conta dos foliões, não haveria condição de controlar as medidas de prevenção ainda necessárias para conter a propagação do vírus.

O Carnaval dos pobres foi suspenso, mas quem tem dinheiro e pode desembolsar até R$ 3.000 por um ingresso poderá curtir à vontade.

Em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, as festas privadas reunirão as celebridades da música pop, funk, samba e axé music.

A verdade é que a folia nunca foi tão democrática

Apesar de a animação contagiar ricos e pobres e a dinâmica da festa permitir algumas brechas e inversões da ordem social, sempre houve a demarcação de espaços por meio de segregações de raça e classe.

A pandemia potencializou e escancarou todas as desigualdades. Já sabemos que há predominâncias relacionadas à cor da pele e às condições financeiras nas principais vítimas do coronavírus, seja entre os mais contaminados e também os que perderam a vida.

A pandemia agora revela o lado nada democrático do Carnaval.

Festas privadas seguem modelo dos camarotes

No segundo ano sem festas nas ruas, em vez das lives que proliferaram em 2021 e tentaram aliviar a nostalgia das famílias reclusas em suas casas, o mercado do entretenimento aposta neste ano nas festas privadas.

Os eventos organizados, com bailes e shows de artistas famosos, parecem novidade, mas seguem uma lógica de segregação e privatização já existente na folia.

O Carnaval de Salvador, por exemplo, sempre manteve historicamente as separações sociais e raciais. Primeiramente, com as festas em clubes da elite econômica da cidade, depois com os blocos nas ruas e seus foliões protegidos por cordas e, finalmente, com a criação dos camarotes no circuito da folia.

Os blocos elitizados que ainda resistem, atraindo turistas de toda parte para Salvador, com os chamados cordeiros humanos fazendo a separação entre os que pagaram pelo abadá e o público "pipoca", são uma mostra do quão racista e desigual é a folia na capital baiana.

Ela já foi pior, quando o endereço e a foto no cadastro das agremiações eram critérios para barrar foliões economicamente e fenotipicamente fora do padrão eurocêntrico.

Com a crise do modelo de negócio dos blocos carnavalescos, os espaços privados dos camarotes cresceram nas últimas décadas, com grandes estruturas que possibilitam uma visão privilegiada para os desfiles dos trios elétricos, com conforto e uma série de serviços.

Além de todas as mordomias oferecidas dentro dos camarotes (salão de beleza, massagem, muita comida, bebidas, etc.), os espaços realizam shows exclusivos, o que torna a festa das ruas menos relevantes para quem pode pagar para acessar esses espaços.

De costas para a avenida, muita gente nem se importa com o que está acontecendo lá fora. Se não forem os artistas mais midiáticos e badalados, o som de dentro dos camarotes nem respeita as manifestações artísticas das ruas.

Tem até camarote em locais distantes dos trios, para aqueles que, do Carnaval, só querem aproveitar mesmo o período.

Para essas pessoas, o Carnaval 2022 seguirá uma lógica parecida, com as ruas vazias e a exclusividade das festas privadas, sem apertos e sem o contato com o povão que aguarda o ano inteiro para extravasar a alegria na avenida.

O governo da Bahia liberou festas com até 1.500 pessoas, com o limite máximo de 50% da capacidade dos espaços. A prefeitura anunciou que já recebeu mais de 20 solicitações para licença de eventos no período do Carnaval. Os jornais anunciam mais de 30 opções privadas para os bolsos mais modestos e também os mais fartos.

Foi a forma que os produtores culturais e as empresas do setor de entretenimento encontraram para amenizar os prejuízos nestes dois anos de pandemia.

A Prefeitura de Salvador calcula que somente o Carnaval injeta R$ 1,5 bilhão na economia da cidade o ano inteiro, por meio das festas, ensaios e todo o preparativo, gerando 50 mil empregos diretos e indiretos, além de projetar a imagem da cidade no Brasil e o mundo.

Vai ter Carnaval sim, só para quem pode pagar

A festa foi cancelada para os mais pobres. Esses não terão a liberdade de curtir as manifestações espontâneas que ocupam as ruas e as atrações gratuitas, como os trios independentes --movimento que vem crescendo em Salvador com o poder público bancando artistas populares para desfilarem sem cordas.

Não terão as entidades de matriz africana, como os blocos afro, as escolas de samba e os afoxés que realizam ações sociais e possibilitam a participação da comunidade em seus desfiles, seja como dançarinos, músicos ou simples foliões.

Os mais pobres também não terão as oportunidades de trabalho oferecidas durante a folia que, se não garantem renda digna, ao menos possibilitam desfrutar da festa enquanto ganham algum trocado. É o caso dos ambulantes, cordeiros e catadores de material reciclável que, obviamente, não terão espaço no modelo privado da folia.

Já escrevemos nesta coluna que até para o meio artístico, que tem no Carnaval uma importante vitrine de visibilidade para carreiras de músicos, dançarinos e cantores, a situação é bem desigual.

Leia em: "Carnaval 2022: defesa da retomada ignora condições desumanas de trabalho"

Repressão nas periferias é certa

Os órgãos públicos prometem fiscalizar os eventos privadas para cobrar a atenção aos protocolos de segurança e prevenção à covid. Veremos.

As certezas que temos são, primeiramente, que os moradores da periferia encontrarão formas de diversão, organizando festas comunitárias, driblando as restrições e mantendo as tradições deste período festivo. Tem sido assim ao longo desses dois anos e não seria diferente em pleno Carnaval.

Além disso, os agentes da segurança pública estarão a postos para reprimir essas aglomerações, com a violência que sempre impera nas operações contra os mais pobres. Afinal, na lógica das autoridades, o risco maior está nos paredões e festas da periferia.

Como criticou o escritor Luiz Antonio Simas, no Twitter: "Festa do povo na rua e desfile de escola de samba viraram aglomerações de vagabundos e propagadores da doença. O vírus, na verdade, é o pobre".

Enquanto isso, a privatização do Carnaval permitirá a quem tem grana se esbaldar em aglomerações confortáveis e com pretensa proteção sanitária.

Somente com os números de contaminados e de internações pós-Carnaval saberemos se os vírus carnavalescos respeitaram essas divisões sociais.