Topo

André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que a previsão dos Orixás para 2023 revelou na 1ª semana de novo governo

Colunista do UOL Notícias

08/01/2023 11h41

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A cada começo de ano, lideranças das religiões de matriz africana são consultadas pela imprensa para informar qual Orixá regerá o novo ciclo que se inicia.

Há quem compreenda que não haja um único Orixá para reger o ano de toda a humanidade e, sim, que cada casa religiosa tenha seu próprio regente, a partir dos caminhos traçados para a comunidade a cada ano. Outros sugerem um ou mais orixá que estará à frente das energias que movimentarão o mundo naquele período.

Não há unanimidade nestas previsões, mas sempre são apontadas as divindades mais recorrentes nas diferentes consultas realizadas por yalorixás e babalorixás que buscam saber o orixá regente do ano.

Djanira Silva - Museu Nacional da República (MuN) - Museu Nacional da República (MuN)
Tela Orixás (1962), de Djanira da Motta e Silva
Imagem: Museu Nacional da República (MuN)

Para 2023, Oxum, divindade das águas doces, protetora da fertilidade, da gestação e do poder feminino, apareceu em várias listas apresentadas pelos religiosos como a Orixá que reinará o ano. Relacionada à beleza e à sensibilidade, Oxum é também a Deusa das Artes.

Com um rico panteão de entidades que se manifestam no sagrado poder da natureza, não é necessário concentrar em apenas uma Orixá toda a dinâmica de um ano. Mesmo assim já se pode perceber, nos primeiros dias do ano novo, os sinais da energia transformadora associada à Oxum.

Em uma semana, 2023 já deu mostras do protagonismo das mulheres, especialmente na política e nas artes.

Entre os muitos ensinamentos da mitologia africana preservada nos terreiros de Candomblé e Umbanda do Brasil, há uma história que revela o pioneirismo de Oxum em reivindicar o lugar da mulher na política.

Conta-se que, inconformada com a exclusividade dos deuses masculinos nas reuniões que decidiam os grandes rumos da humanidade, Oxum utilizou-se do seu poder encantado e decretou a suspensão da fertilidade no mundo: as mulheres não poderiam mais procriar, os animais ficaram inférteis, as plantas pararam de se reproduzir, tudo secou. A vida somente voltou a ser gerada, quando os deuses masculinos mudaram suas atitudes, incluindo as orixás femininas no centro das decisões.

Por isso, Oxum é considera a patrona da força política das mulheres.

O Brasil de 2023 acordou ainda em êxtase com a festa da democracia vivenciada no domingo (1º) com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva para seu terceiro mandato como presidente do Brasil.

Entre as oito pessoas escolhidas para subir a rampa com o novo presidente, representando brasileiros e brasileiras de diferentes origens, idades e ocupações, coube à mulher negra Aline Souza, 33, presidente da Rede Centcoop (Central das Cooperativas de Trabalho de Catadores de Materiais Recicláveis) do Distrito Federal, a tarefa de colocar a faixa presidencial em Lula.

A diversidade de brasis que subiu a rampa junto com o presidente foi celebrada também no Festival do Futuro, com artistas apresentando as músicas das diversas regiões do país.

Nas cerimônias de posse dos ministros do novo governo, que aconteceram ao longo da semana, a confirmação da mudança de rota: do Brasil negacionista, que apelidava dores de mimimi, para um país que assume suas desigualdades e diferenças, consciente de que as primeiras devem ser combatidas com políticas públicas e as segundas celebradas com respeito.

Ao longo da semana, em diferentes discursos, evidenciou-se as qualidades das mulheres escolhidas para compor o novo governo e a expectativa de que serão, finalmente, valorizadas essas contribuições das mulheres ao país.

Com um número recorde de mulheres na história, o governo Lula 3 conta com 11 ministras e duas mulheres à frente dos bancos estatais, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil.

Na posse das ministras, falas fundamentais para a reconstrução da democracia e da cidadania brasileira.

Elas estiveram em evidência, seja na recriação do Ministério da Cultura, tendo à frente a cantora e gestora cultural Margareth Menezes;

No retorno do Brasil ao centro das discussões sobre a preservação ambiental, tendo Marina Silva de volta ao Ministério do Meio Ambiente, agora também das Mudanças Climáticas;

E até nos primeiros embaraços da gestão, seja na fala da ministra do Planejamento Simone Tebet sobre a dificuldade de compor sua equipe com mulheres pretas, rapidamente contornada pela iniciativa da ministra da Promoção da Igualdade Racial, Anielle Franco que, cumprindo a finalidade da sua pasta, logo apresentou uma relação de pretas capacitadas e interessadas em discutir orçamento e gestão pública;

Mas também na comprometedora relação com milicianos da ministra do Turismo, Daniela Carneiro, conhecida como Daniela do Waguinho, que exemplifica bem um questionável caminho ainda trilhado por muitas mulheres para adentrar na política partidária —o apadrinhamento de maridos ou pais, em um evidente comprometimento da autonomia feminina.

Toda a programação para celebrar o novo governo, que animou a esperança de boa parte do país, incluindo a decisão pela subida coletiva da rampa e a representatividade dos cidadãos e cidadãs escolhidos passou pelo crivo da socióloga Janja Lula da Silva, a primeira-dama do país.

As escolhas de Janja reforçaram o simbolismo de um tempo de mudança de rumos para a nação.

Desde a escolha do figurino, com o inédito conjunto de calça e terno com destaque para os bordados dourados nas cores de Oxum, passando pela celebração festiva com a diversidade das artes, e também pelos posicionamentos da primeira-dama, seja nas cerimônias de posse de alguns ministérios até o convite feito a uma emissora de televisão a visitar o Palácio do Alvorada, para denunciar o descuido da gestão anterior com o patrimônio brasileiro.

Janja Lula da Silva - Ricardo Stuckert - Ricardo Stuckert
Janja usou, na posse de Lula, um conjunto de seda com tingimento natural assinado por Helô Rocha em parceria com as bordadeiras de Timbaúba
Imagem: Ricardo Stuckert

A falta de conservação do Palácio do Alvorada, residência oficial do presidente da República, denunciada por Janja em entrevista à Globo News, soma-se ao desprezo pelo patrimônio também do Palácio do Planalto, local de trabalho do chefe do Poder Executivo do Brasil.

A convite da socióloga, a equipe de reportagem registrou a situação do Alvorada com infiltrações no teto, vidros rachados, piso de madeira com rachaduras, poltrona de couro e tapete rasgados, além de descaso com as obras de arte do Palácio —uma imagem sacra do século 19 foi encontrada no chão.

Durante a pose de Margareth Menezes, Janja da Silva já havia abordado a avaria sofrida pelo quadro 'Orixás', da pintora Djanira Silva.

Por ignorância, intolerância religiosa e desprezo pela arte brasileira, o quadro foi retirado pelo antigo governo do lugar de destaque que ocupava no Salão Nobre do Palácio do Planalto e substituído por uma réplica da tela "Pescadores" (1958), também de Djanira.

A primeira-dama falou de um furo feito de caneta na valiosa tela e prometeu que a obra vai voltar ao local que pertence, o Palácio do Planalto, junto a um trabalho de recomposição do acervo.
.
O desprezo contra o quadro de Djanira, com as Orixás femininas (yabás) Iansã, Nanã e Oxum (no centro da tela) revela o clima de fundamentalismo, intolerância religiosa e ataques às artes e à memória nacional vividos pelo país nos últimos anos.

É tempo de esperançar e o ano novo iniciou em um domingo, dia da semana dedicado aos Ibejis, divindades infantis cultuadas nas religiões de matriz africana e que representam a alegria, a inocência, a curiosidade e o apreço pelo novo contida na energia das crianças.

De todas as imagens que vimos nesta primeira semana do ano, não sairá das mentes esperançosas do Brasil, o pequeno Francisco Carlos do Nascimento, 10, ao lado no novo presidente, inspirando outros brasileiros de todas as idades ao interesse pela política, a se ocupar dos temas do Brasil e até a sonhar um dia vestir a faixa presidencial.

Eu tenho fé em Orixás, mas tem muita gente que não acredita nesta força sagrada que se expressa na natureza. Está tudo bem também, afinal as diferenças devem ser celebradas com respeito.

Mas algo que precisamos concordar é na importância dos atos humanos, especialmente de pessoas em cargos políticos. Há consequências bem diferentes quando se estimula o ódio, o desprezo, a separação e a intolerância ou quando se prega a união, a alegria e a vida, com mensagens de otimismo e de valorização da contribuição de cada um e, especialmente, de cada uma, na construção da nação.

Que Oxum, Ibejis e toda a força do Sagrado abençoem esse recomeço, trazendo possibilidade de acertos para o Brasil e a população brasileira.