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Bembé do Mercado: Candomblé de rua celebra luta negra por fim da escravidão
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Os esforços de pesquisadores e ativistas do movimento negro em demonstrar que a luta da população negra no Brasil por liberdade e direitos não inicia, e nem tampouco se encerra, em torno do 13 de maio de 1888 — data da assinatura da Lei Áurea —, não significam desconsiderar o valor histórico da data.
A permanência das desigualdades raciais e das relações escravistas nos dias de hoje exigem ainda mais olhares e reflexões sobre a história da escravidão e o modo como se deu a abolição do trabalho escravo no Brasil.
Abandonar a data da abolição por conta da falsa narrativa de benesse da princesa Isabel é ignorar uma luta coletiva travada por negros, escravizados e libertos, que construíram as condições para tornar insustentável a manutenção da escravidão. Jogar a água da bacia com a criança dentro é contribuir para o apagamento do protagonismo negro na construção da sua própria liberdade.
Como já defendeu aqui na coluna a historiadora Ana Flávia Magalhães:
O fim da escravidão foi um projeto sonhado e construído por pessoas negras, que resistiram em fugas e levantes ou que aproveitaram as brechas do sistema para pressionar o Estado brasileiro.
Bembé reúne manifestações da cultura negra, além do candomblé
Testemunha do significado da data para os negros brasileiros é a persistência do Bembé do Mercado que, desde 13 de maio de 1889, ou seja, um ano depois da abolição formal da escravidão no Brasil, é realizada na histórica cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia, a 80 km de Salvador.
A forma que os negros que cultuavam a religião de matriz africana encontraram para comemorar a conquista da liberdade foi promover uma festa em agradecimento aos Orixás, um grande candomblé de rua.
O Bembé do Mercado é uma manifestação cultural e religiosa, que reúne mais de 65 terreiros de candomblé, no largo do mercado principal de Santo Amaro da Purificação. É um raro momento em que uma cerimônia do candomblé acontece na rua, onde também são apresentadas outras expressões da cultura afro-brasileira, como o samba de roda, a capoeira, o maculelê, o lindro amor, o nego fugido de Acupe, as caretas de Saubara, entre outras práticas deixadas pelos escravizados.
"Uma verdadeira teia cultural", como define o babalorixá José Raimundo Lima Chaves, o Pai Pote, 58, liderança do terreiro Ilê Axé Oju Onirê e um dos principais mobilizadores para a realização do Bembé do Mercado. O Bembé atrai religiosos e grupos culturais de outras cidades da Bahia, inclusive da capital.
Pai Pote conta que as celebrações pelos 134 anos do Bembé já começaram desde o dia 10, quarta-feira, com palestras e apresentações culturais. O tema central deste ano é a defesa e salvaguarda dos territórios ancestrais como patrimônios da humanidade.
O ponto alto do Bembé é o xirê (roda para os Orixás) que acontece no sábado, dia 13, além da entrega do presente na praia de Itapema, no domingo, 14, para Iemanjá e Oxum, entidades das águas, que sempre garantiram o alimento ao povo negro.
"Este ano faremos a inauguração de um busto em reconhecimento a João de Obá, líder religioso que deu início ao Bembé em 1889, além de prestarmos homenagens a pessoas que fortalecem a nossa luta por respeito e liberdade religiosa", conta Pai Pote. O pai de santo é filho de Ogum, entidade guerreira que vai à frente nas demandas, mas também cumpre a função de unir seu povo em torno das grandes causas.
Com essa inspiração Pai Pote faz o ajô (união) do povo de santo para manter forte a tradição centenária do Bembé do Mercado.
Depois de um ano de muita resistência, para fazer valer a liberdade, João de Obá trouxe suas filhas de santo e os atabaques para o largo do mercado e iniciou essa celebração, em agradecimento não à princesa, mas aos Orixás e toda nossa ancestralidade.
Pai Pote explica a origem da festa
O Bembé do Mercado inspirou a canção 13 de Maio, de Caetano Veloso, um dos filhos ilustres da cidade de Santo Amaro da Purificação.
Dia 13 de maio em Santo Amaro / Na Praça do Mercado / Os pretos celebravam / Talvez hoje ainda o façam / O fim da escravidão / Da escravidão / o fim da escravidão/ O fim da escravidão / Da escravidão.
Caetano Veloso, 13 de maio
Na cidade também nasceram, entre tantos nomes, a cantora Maria Bethânia, os músicos Roberto Mendes, Jorge Portugal, Assis Valente, o artista plástico e criador do Museu Afro Brasil, Emanoel Araújo, e tia Ciata, pioneira no intercâmbio cultural e religioso entre Bahia e Rio de Janeiro.
Patrimônio da Humanidade
Em 2019, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconheceu o Bembé do Mercado como Patrimônio Cultural do Brasil. Antes, em 2012, o Governo da Bahia já havia feito esse reconhecimento em nível estadual.
Agora os organizadores da festa buscam o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, oferecido pela Unesco/ONU, o que garantirá a valorização e preservação como um bem de valor para todos os povos do mundo.
"Em 2018, exibimos o filme sobre o Bembé do Mercado na sede da Unesco, em Paris, e protocolamos a solicitação para o reconhecimento do Bembé como patrimônio da humanidade. O processo está em análise", diz Pai Pote.
Entre as justificativas, a longevidade da festa e a resistência dos terreiros em manter a tradição.
É muita coragem de um povo realizar uma manifestação como essa, na rua, em um país racista, que sempre combateu o candomblé e que, até 1976, tinha que pedir autorização na delegacia para realizar uma cerimônia religiosa de matriz africana.
Ana Cristina da Purificação, 57, uma das organizadoras do evento
Ana Cristina se refere à exigência aos terreiros de um alvará de funcionamento emitido na Delegacia de Jogos e Costumes.
"O Bembé resistiu a toda forma de opressão, atravessando regimes militares e governos autoritários", lembra ela, que também é filha do orixá Ogum e exerce o cargo de ekedi (ajoie) no Ilê Axé Oju Onirê e é a mayê do Bembé do Mercado, função muito importante no cuidado de todos os preparativos para a cerimônia.
Questionada sobre o que faz da cidade de Santo Amaro — que no passado foi um dos centros da economia colonial que explorava o trabalho escravo nas plantações de cana de açúcar — ser um celeiro de tantas manifestações culturais, Ana Cristina responde:
Com tanta repressão e violência, os negros fizeram do limão uma limonada. O Bembé do Mercado prova que para enfrentar a dor, a gente se renova com a festa".
Como diz a canção de Caetano, no 13 de maio em Santo Amaro os negros ainda celebram o fim da escravidão "com aluá, maniçoba e foguetes no ar".
Mas não é para saudar Isabel, como escreveu o compositor. Talvez não mais, se assim já fizeram um dia.
Os toques ancestrais, as danças, os cantos e folias são para figuras como João de Obá e tantos e tantas que lutaram pela liberdade, nas senzalas, quilombos, terreiros, irmandades e no mercado, onde afinal, podem comemorar.
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