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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

2 de Julho: O Brasil dos brasileiros nasceu há exatos 200 anos

Festa do 2 de julho nas ruas de Salvador celebra a conquista popular da independência - Adeloyá Magnoni
Festa do 2 de julho nas ruas de Salvador celebra a conquista popular da independência Imagem: Adeloyá Magnoni

Colunista do UOL

02/07/2023 04h00

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Nos últimos anos, os historiadores têm contestado a versão que aprendemos na escola de que a proclamação da Independência do Brasil teria sido fruto do grito dado por Dom Pedro, às margens do rio Ypiranga, em 7 de setembro de 1822, de forma heroica, mesmo sem um suor ou sangue derramado.

O processo de ruptura do poder colonial português contou com muitos momentos importantes e demonstrações reais de subversão do povo brasileiro por liberdade. Mas poucos conseguem reunir tantas simbologias que justifiquem ser considerado um marco da Independência do Brasil como o dia 2 de julho de 1823.

Por isso podemos dizer que hoje é o verdadeiro Dia da Independência do Brasil.

Nesta data, há exatos 200 anos, o exército libertador, formado por brasileiros brancos, mestiços, indígenas, negros escravizados, libertos ou nascidos livres, entrava em Salvador triunfante após expulsar as últimas tropas portuguesas que insistiam em se manter no território brasileiro, na esperança de reverter a situação política e retornar o domínio sobre o Brasil.

Personagens históricos e simbólicos

Essa força brasileira se mostrou decisiva em diversos momentos do processo de independência, nas batalhas em que se destacaram figuras como Maria Quitéria, uma mulher sertaneja que se vestiu de homem para lutar; Maria Felipa, que liderou marisqueiras na resistência da Ilha de Itaparica, impedindo a estratégia portuguesa de invasão pelo mar; a tropa de indígenas flecheiros, chefiados pelo cacique Bartolomeu e todos os indígenas e quilombolas que, conhecedores do território baiano, garantiram sucessivas derrotas aos portugueses, em conflitos como a sangrenta Batalha de Pirajá, nos arredores de Salvador, em 8 de novembro de 1822.

Ou seja, dois meses depois da independência formal proclamada por Dom Pedro, na Bahia havia luta com sangue negro e indígena derramado. Como cantou o samba enredo da Mangueira de 2019: "tem sangue retinto pisado, atrás do herói emoldurado".

Espetáculo A Resistência Cabocla do Bando de Teatro Olodum: luta negra e indígena na Independência do Brasil - Letícia França - Letícia França
Espetáculo A Resistência Cabocla do Bando de Teatro Olodum: luta negra e indígena na Independência do Brasil
Imagem: Letícia França

Desde as primeiras manifestações festivas, ainda em 1823, pela expulsão dos portugueses, todas essas narrativas foram ganhando força, ao longo desses 200 anos, ora pela investigação de pesquisadores que se insurgiram à historiografia oficial limitada ao heroísmo de homens brancos europeus; ora pela expressão da cultura popular, que com recriações tornou os heróis e heroínas do 2 de Julho símbolos de resistência e mitos da nacionalidade.

Hoje, nas ruas de Salvador e de diversas cidades da Bahia, esses nomes serão lembrados em hinos, cantos, fantasias e monumentos, em desfiles que celebram a independência do Brasil. Os festejos têm como personagens centrais o Caboclo e a Cabocla, figuras culturais e também religiosas que unificam os elementos da mistura étnica entre brancos, negros e indígenas que formam o povo brasileiro.

A história do 2 de Julho

As comemorações em torno do 2 de Julho possuem fatos históricos e recriações simbólicas suficientes para fazer desta data o marco de nascimento de um país livre, independente do poder estrangeiro e tendo seu próprio povo como protagonista da libertação.

"O 2 de Julho de 1823 é a consolidação de um processo de ruptura que não se concretizou em 7 de setembro de 1822, data que funcionou apenas no aspecto formal, sem confrontos. Diferente do 2 de Julho, quando o povo brasileiro, em seus segmentos sociais mais amplos, muitos como voluntários e sem treinamento, teve que lutar contra o bem treinado exército português, já experimentado em guerras na Península Ibérica", destaca o doutor em História, Paulo Cesar Oliveira de Jesus, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Em entrevista à coluna, o professor Paulo de Jesus explica que os conflitos armados que ocorreram em Salvador e nas cidades em torno da Baía de Todos os Santos (que formam o Recôncavo Baiano) iniciaram muito antes da decisão de Dom Pedro de tornar o Brasil independente de Portugal.

"Há registro de conflitos na Bahia desde novembro de 1821, em defesa de um Brasil dos brasileiros em contraposição a decisões tomadas por Portugal logo após a Revolução Constitucionalista do Porto, de 1820, que tinha, entre outras, a intenção de reconduzir o Brasil à condição de colônia portuguesa", lembra o historiador.

O tumultuado ano de 1822 iniciou com o famoso Dia do Fico quando, em 9 de janeiro, Dom Pedro, então príncipe regente, decidiu permanecer no Brasil, não cumprindo a ordem da Coroa Portuguesa de voltar a Portugal para reforçar o poder da metrópole europeia.

Os municípios do Recôncavo Baiano, como Santo Amaro e Cachoeira, se organizaram em defesa da decisão de Dom Pedro.

Os intensos conflitos eclodiram nas cidades baianas. De um lado, Portugal tentando aumentar o seu poder e conter insurgências nomeia o brigadeiro português Inácio Luís Madeira de Melo como comandante das armas do Brasil no lugar de um militar baiano. Do outro lado, câmaras municipais, fazendeiros e comerciantes baianos se unem para exigir um governo de brasileiros.

Salvador se tornou uma praça de guerra, com as tropas lideradas por Madeira de Melo "tocando o terror" contra os cidadãos da cidade.

"Os soldados portugueses saqueavam casas, matavam escravizados, maltratavam pobres nas ruas e trabalhadores que permaneceram cuidando das propriedades após a ida dos patrões para o interior do estado por conta da guerra. Quem mais sofreu foi o povo que não tinha como sair da cidade e a única possibilidade foi resistir e defender o território brasileiro", detalha Paulo de Jesus.

Entre os absurdos cometidos pelas tropas portuguesas está a invasão do Convento da Lapa, no centro da cidade. Na tentativa de impedir com o próprio corpo a entrada de soldados no claustro feminino, a abadessa Joana Angélica foi morta, tornando-se mártir e mais uma das figuras míticas da nossa independência.

Uma das principais estudiosas da participação da Bahia no processo de Independência do Brasil, a professora Wlamyra Albuquerque, da Universidade Federal da Bahia, reforça que nas celebrações ao 2 de Julho e nas narrativas preservadas sobre a data, sempre se sobressai a valorização do caráter popular desta conquista.

"Isso mostra como o povo baiano lê a independência, as lutas e o processo de conquista da autonomia política como parte da sua própria ação, da ação popular. Por isso o 2 de Julho é tão importante não só para os baianos como para todos os brasileiros", afirma a historiadora, autora do livro "Algazarra nas ruas - Comemorações da Independência na Bahia (1889-1923)".

Maria Felipa heroína da Independência - Reprodução/Instagram/@instaparica - Reprodução/Instagram/@instaparica
Excerto do quadro 'Alegoria ao 7 de janeiro de 1823', de Mike Sam Chagas. Maria Felipa está representada segunrando uma tocha
Imagem: Reprodução/Instagram/@instaparica

Entre os episódios que reforçam como essa conquista se deu pela disposição popular em lutar com as armas que tinham, ou mesmo quando não as tivessem, conta-se que Maria Felipa e as mulheres da Ilha de Itaparica usaram folhas de cansanção para surrar os soldados portugueses e que as mulheres de Saubara, outro município do Recôncavo, se cobriram com panos brancos e saíram na madrugada, como assombrações, para assustar os portugueses e conseguirem levar alimentos e munição às tropas brasileiras.

Por fim, e tão decisiva, está a história do corneteiro Luís Lopes, responsáveis pelos toques que informavam os comandos às tropas do Brasil. Os registros históricos mostram que, além de menos treinados, o contingente brasileiro seria bem menor do que o lusitano. Percebendo que não teria chance de vencer, o comandante ordenou ao corneteiro para tocar a retirada. Ao invés disso, Luís Lopes tocou avançar cavalaria. O fato assustou as tropas portuguesas que não esperavam tanta bravura do adversário, além de estimular os soldados brasileiros.

Não se sabe se Luís Lopes agiu por engano ou já encorajado pelo senso de sobrevivência brasileiro de enfrentar os desafios na base do "ou tudo ou nada". O que sabemos é que brancos pobres, indígenas e negros escravizados e libertos venceram a guerra, expulsaram o colonizador e garantiram a independência, fazendo nascer, um Brasil dos brasileiros.

Pouco a pouco, o Brasil tem dado mais visibilidade para essa data, tornando possível que mais brasileiros conheçam sua verdadeira história e orgulhem-se da força popular das nossas conquistas.

Quer continuar essa conversar? Leia o artigo publicado aqui na coluna em 2020, com mais detalhes sobre o processo de Independência do Brasil na Bahia:

A data de hoje, 2 de julho, atesta o poder de mobilização das camadas populares para as transformações necessárias à democracia