André Santana

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Opinião

Ataque a Duvivier por defesa de negra no STF reforça pacto da branquitude

Engana-se quem pensa que apenas a extrema direita radical, defensora do conservadorismo e da manutenção das desigualdades, é contrária ao avanço da presença de pessoas negras em todas as esferas de poder e decisão deste país.

No Brasil, há um "mau-caratismo", disfarçado de inocentes boas intenções, em achar que é possível ser antirracista, sem defender que negros e negras tenham acesso aos espaços de direitos e oportunidades garantidos aos demais cidadãos.

A disposição de certas pessoas em lutar contra o racismo se esgota na menor exigência das pessoas pretas por igualdade de protagonismo e representatividade, com os quais realmente possam inverter a lógica de segregação estruturada pelo racismo.

A necessária e urgente indicação de uma mulher negra ao STF (Supremo Tribunal Federal), uma possibilidade concreta que neste momento cabe ao presidente Lula, é uma ideia combatida ferozmente por setores da militância da esquerda brasileira.

Difícil de acreditar que os chamados progressistas, que dizem combater as formas de opressão do capitalismo, da concentração de privilégios e da exploração de classe, não compreendam a importância de romper essa ausência histórica da mulher negra nas altas esferas da política e da Justiça do Brasil.

Base da pirâmide social e econômica e alijada de direitos, a mulher negra é a principal vítima de todas as formas de violências perpetradas pela combinação explosiva do preconceito de raça, gênero e classe social em suas práticas cotidianas e institucionais.

Por isso nunca na História do Brasil, a mais alta Corte da Justiça foi ocupada por uma mulher negra. Ao contrário disso, o STF continua sendo um espaço do exercício, quase exclusivo, do poder de homens brancos.

A recente indicação feita por Lula do seu ex-advogado Cristiano Zanin só reforçou essa segregação. E ainda conseguiu piorar, a julgar os primeiros votos do ministro, contrários aos direitos de grupos historicamente discriminados.

Causa realmente espanto que esse marco de indicar uma mulher negra, de notório saber jurídico, moral ilibada e postura progressista diante do Direito moderno, que ressaltaria o caráter democrático da gestão petista, encontra entraves impulsionados pela própria esquerda, incluindo militantes petistas.

Essa postura retrógrada ficou evidente com os ataques que o humorista e jornalista Gregório Duvivier (apoiador declarado da campanha de eleição do atual presidente) tem sofrido da tal frente progressista do país.

Após o comunicador cobrar coerência do presidente Lula e respeito à promessa de diversidade na indicação de uma jurista negra para o STF na vaga que será aberta com a aposentadoria da ministra Rosa Weber em setembro, os apoiadores do governo em vigor decidiram hostilizá-lo nas redes digitais.

O comunicador se apoia na promessa por diversidade e inclusão feita por Lula na posse, quando subiu a rampa com representantes dos povos indígenas, das mulheres negras, da comunidade LGBTQIA+ e das pessoas com deficiência.

Duvivier utilizou sua popularidade para reforçar a cobrança que tem sido feita por diversas personalidades e movimentos como a Coalizão Negra por Direitos e o Mulher Negras Decidem, que buscam promover mulheres negras na política institucional, superando a falta de representatividade nas instâncias de poder.

O MDN lançou uma lista tríplice de indicação formada pelas juristas: Adriana Alves dos Santos Cruz, Lívia Sant'anna Vaz e Soraia Rosa Mendes.

"Mulheres negras que, para além do currículo, conhecimentos técnicos acerca do Direito e da conduta ética, podem contribuir para que a Justiça brasileira seja instrumento de garantias de direitos à população", anuncia o movimento em sua página no Instagram.

Convite a Lula para conhecer as juristas negras

De forma criativa, Duvivier criou um site para reunir assinaturas em um convite ao presidente Lula para que o mandatário possa ao menos se reunir e conhecer essas juristas.

Achamos que o Lula vai adorar conhecer as mulheres negras que podem —e devem!— ocupar esse cargo, e para isso estamos marcando um singelo café para reunir algumas delas com o presidente", diz o humorista no site www.tomaumcafecomelas.com.br/.

A proposta do Duvivier irritou setores da esquerda que partiram para uma militância digital contrária à indicação considerada "identitária".

Já escrevemos aqui na coluna que o rótulo do "identitarismo" esconde ataques a movimentos sociais que lutam por direitos fundamentais de grupos historicamente discriminados, injustamente acusados de fomentar problemas em vez de serem vistos como formuladores de soluções.

No X, antigo Twitter, em resposta à cobrança do comediante, o PCO (Partido da Causa Operária) comentou: "Gregório Duvivier, que liderou a pressão identitária contra a indicação de Zanin, agora chantageia o presidente para indicar alguém submisso ao imperialismo para a próxima vaga do STF".

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No mesmo teor, diversos petistas fizeram mais comentários sobre a cobrança. Um deles dizia o seguinte: "Gregório Duvivier deveria começar sua ira por representatividade no Porta dos Fundos".

Outros posts destacavam que o próximo ministro não deveria ser escolhido pela cor, e sim pela reputação e conhecimento jurídico.

"Vocês estão achando que cargo vitalício na Suprema Corte é presente pra ficar distribuindo pra qualquer pessoa né? Faça-me o favor. Ministro tem que ser escolhido pela reputação e pelo conhecimento jurídico, e não pela cor da pele ou ideologia política", disse um usuário na rede social X.

Criou-se um movimento violento por uma cobrança pertinente e relevante em termos de representatividade e avanços políticos de um país que despeja tantas mazelas sobre as mulheres negras, uma minoria econômica e política, que até hoje enfrenta os resquícios da escravidão.

No Brasil, dos 168 ministros que ocuparam uma cadeira na Corte desde a Proclamação da República, apenas seis não eram homens brancos. Em mais de um século, o Supremo foi ocupado por apenas três homens negros: Pedro Augusto Carneiro Lessa, Hermenegildo Rodrigues de Barros e Joaquim Barbosa.

Apenas três mulheres brancas foram ministras: Ellen Gracie, Carmen Lúcia e Rosa Weber. Já as mulheres negras, infelizmente, nunca ocuparam o cargo.

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Esquerda reforça o 'Pacto da Branquitude'

Ao se posicionar contra uma cobrança válida, a esquerda confirma uma má vontade em enfrentar de fato o problema do racismo e do machismo. Isso explica porque o PT continua sendo liderado por um grupo de homens, brancos, heterossexuais e representantes de uma elite econômica.

Quem ataca Gregório Duvivier quer então que as coisas continuem como estão, com o poder concentrado, mesmo em um governo democrático.

A própria promotora de Justiça do Ministério Pública da Bahia Lívia Sant'anna Vaz, em entrevista à coluna no ano passado, explicou como funciona o "pacto narcísico da branquitude" contra a diversidade.

O conceito cunhado pela Doutora em Psicologia pela USP e colunista da Folha, Cida Bento, refere-se aos compromissos de proteção e promoção entre os brancos visando manter os privilégios proporcionados pela estrutura racial, impedindo o acesso às oportunidades aos não brancos.

A sub-representação, e quase ausência, de pessoas negras, notadamente de mulheres negras, no sistema de Justiça tem tudo a ver com a forma que nós construímos justiça ou injustiça no país. Essa invisibilidade da pauta racial, esse controle de corpos negros por meio do direito penal, sempre existiu e segue existindo no Brasil. Embora tenhamos evoluído na legislação antirracista, a interpretação e aplicação do Direito se dá, em grande medida, por homens brancos.
Lívia Sant'anna Vaz, promotora de Justiça

A pauta de uma ministra negra no STF é essencial, sobretudo, porque toda a população brasileira precisa estar representada nesse espaço.

Uma mulher negra, conhecedora das injustiças deste país, pode trazer um novo olhar para o entendimento e a forma que interpretamos as leis. Isso, sem dúvida, é fundamental para quebrar com a arena de poder de decisão que, há muito tempo, segue concentrada em um grupo social, que interpreta os fatos a partir de um olhar único e concentrado, limitando o alcance da democracia.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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