O que a história da Imprensa Negra diz sobre a vaga de novo ministro do STF
Em 14 de setembro de 1833, ou seja, há exatos 190 anos, era publicado o primeiro jornal feito por pessoas negras no Brasil, o pasquim O Homem de Côr.
Ainda sob o regime da escravidão, que somente seria abolida formalmente 55 anos depois, o jornal foi possível graças ao pioneirismo de Francisco de Paula Brito, ele próprio um 'homem de cor', proprietário da Tipografia Fluminense, que imprimiu o folheto noticioso.
Escritor, jornalista e tipógrafo, Paula Brito ganhou experiência trabalhando em diferentes publicações, até criar sua própria editora, pela qual publicou importantes nomes da incipiente literatura brasileira, como Gonçalves de Magalhães, Martins Pena e Machado de Assis, considerado o maior escritor do Brasil, também um 'homem de cor', assim como Paula Brito.
Importante destacar que a Imprensa Brasileira inicia somente em 1808, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, quando finalmente temos a publicação de livros e jornais em solo brasileiro. Apenas lentamente, o Brasil passou a contar com bibliotecas e livrarias, e publicações de periódicos, muitos concentrados nos temas da economia e das relações com o poder imperial.
O que torna a publicação de um jornal abordando o debate racial e questões de interesse dos negros, um feito ainda mais extraordinário.
O Homem de Cor, que logo ganhou um acréscimo no nome para O Mulato ou O Homem de Cor, teve cinco edições, que circularam entre os meses de setembro e novembro de 1833, no Rio de Janeiro, capital do Império.
Era um período tenso para a política do Brasil, governado por regências provisórias, já que o imperador Dom Pedro I havia abdicado do trono, em 1831, e o herdeiro, Pedro 2º, tinha apenas 5 anos de idade.
Em meio a debates intensos que circulavam nos jornais da época, O Homem de Cor possibilitou a divulgação de ideias e reivindicações da população negra, formada por pessoas livres e libertas, que já constituía um contingente significativo àquela época.
Além de bradar pela cidadania dos homens de cor, o jornal denunciava os preconceitos e violências sofridas por pessoas negras e chegou a noticiar a prisão injusta de um homem preto por suposta vadiagem e porte de arma.
Outro tema de relevância foi a ocupação de cargos públicos por pessoas de cor e a resistência das elites em respeitar o direito constitucional de cidadãos libertos, cumprirem funções publicas, independentemente da cor, reivindicações que ganharam destaque em veículos negros posteriores.
Todas essas histórias de pioneirismo de Francisco de Paula Brito e do pasquim O Homem de Cor estão registradas na obra 'Imprensa Negra no Brasil do século XIX' (Selo Negro, 2010), da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto.
Veículos negros em diferentes cidades do Brasil
Outros jornais feitos por pessoas negras, veiculando assuntos de interesses das populações negras, surgidos no mesmo período, são analisados pela pesquisadora em seu livro. Entre eles estão: Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Lafuente, do Rio de Janeiro, em 1833; O Homem: Realidade Constitucional ou Dissolução Social, de Recife, em 1876; A Pátria - Órgãos dos Homens de Cor, de São Paulo, em 1889 e O Exemplo, de Porto Alegre, em 1892.
Ana Flávia Magalhães Pinto, que atualmente é a diretora geral do Arquivo Nacional, também é autora do livro 'Escritos de Liberdade - literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista (Editora Unicamp, 2018)´.
Em suas pesquisas, ela destaca a atuação de negros letrados que, ao longo do século 19, em pleno regime escravocrata, puderam gerar e absorver as ideias emitidas nos jornais da imprensa negra, disseminando-as para a população não leitora.
"Importava questionar as efetivas condições de realização daquelas promessas de liberdade que havia tempos circulavam e ganhavam forma nas mentes de livres e libertos - sem falar dos escravizados", escreveu Ana Flávia Magalhães Pinto, em Imprensa Negra no Brasil do século XIX.
Exemplares desses jornais encontram-se no setor de Periódicos, da Biblioteca Nacional, na Praça da Cinelândia, Rio de Janeiro, mas também podem ser acessados na hemeroteca digital. No acervo da Biblioteca também estão dois veículos publicados na Bahia, no século 19, com as preocupações características da imprensa negra: O Abolicionista, publicação quinzenal da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, lançado em 1871 e O Asteroide - Orgam da Propaganda Abolicionista, publicado em Cachoeira, em 1887.
Resistência à ocupação de cargos públicos por pessoas pretas
É a própria Ana Flávia Magalhães Pinto que destaca, em seu livro, o debate central que O Homem de Cor traz em suas edições: a ocupação de funções no serviço público por parte de pessoas negras. O que nos remete ao debate atual sobre a ausência de ministros negros no STF (Supremo Tribunal Federal) e da forte campanha de mobilização pela indicação de uma mulher negra à suprema corte, fato que nunca ocorreu na história de 132 anos da instituição.
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Quero receberEm 1833, o jornal O Homem de Cor trazia em seu cabeçalho, de um lado, a transcrição do parágrafo 14 do artigo 179 da Constituição de 1824, que diz: "Todo o Cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis, políticos e militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes".
Já do outro lado, em mesmo destaque no cabeçalho, há a reprodução de um trecho do ofício de Manuel Zeferino dos Santos, então presidente da Província de Pernambuco, de 12 de junho de 1833, referente às preocupações com a formação racial da Guarda Nacional, que dizia: "O Povo do Brasil é composto de Classes heterogêneas, e debalde as Leis intentem misturá-las, ou confundi-las sempre alguma há de procurar, e tender a separar-se das outras, e eis um motivo a mais para a eleição recair nas classes mais numerosas".
O jornal, então, cumpria a função de reforçar a igualdade de direitos defendida na lei maior do país, contra a tentativa de estratificação baseada na cor dos indivíduos. Estava em questão naquele momento a ocupação de cargos na Guarda Nacional e o temor de que homens negros chegassem a funções de comando na instituição.
Assim como O Homem de Cor, outros veículos negros do mesmo período repercutiram a pauta do respeito à lei e da igualdade no acesso às instituições do Império, com relatos de situações em que cidadãos foram preteridos por conta da cor da sua pele.
As notícias trazidas nos jornais da imprensa negra revelam a resistência das elites brasileiras em conviver com a ascensão dos negros por meio da atuação profissional, mesmo para os libertos e para aqueles que demonstravam competência e compromisso com a nação.
Em 2023, as páginas de jornais precisam ser preenchidas com argumentos da importância de se combater o racismo e a desigualdade racial com o respeito à Constituição Brasileira e o acesso de pessoas negras aos espaços de poder e decisão no país, seja em mandatos eletivos, em cargos de confiança na administração pública ou em posições estratégicas para reverter a estruturas sociais e econômicas sustentadas pelo racismo..
A necessidade de campanhas pela indicação de uma mulher negra ao STF e a oposição de grupos, inclusive da esquerda, a essa medida reparadora, infelizmente, informa que essa e outras reivindicações da imprensa negra ainda não foram superadas pela democracia brasileira.
Passados 190 anos de história da imprensa negra, ainda precisamos ocupar os jornais para falar de direitos básicos, de alertar contra a violência física e de denunciar as práticas institucionais para barrar a liberdade e a cidadania das pessoas negras no Brasil.
Vozes de Liberdade aos longo da história
A boa notícia é que a existência de experiências de jornalismo negro desde 1833, o fortalecimento dessas práticas ao longo do século 20 e a consolidação das mídias negras na era digital demonstram o empenho das pessoas negras no Brasil de enfrentar todas as barreiras impostas e utilizar as ferramentas de comunicação para ecoar ideais de liberdade e cidadania e exigir direitos.
Neste sentido, vale destacar que ainda em 1798, homens pardos e pretos, livres e libertos, trabalhadores explorados, produziram folhetos para fazer circular ideias radicais de igualdade e pelo fim da escravidão.
"Animai-vos povo bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade: o tempo em que seremos todos irmãos, tempo em que seremos todos iguais", Boletim Sedicioso, Revolta de Búzios, Salvador, 1798.
Esta é uma das frases que foram espalhadas pela cidade de Salvador, em agosto de 1798, durante a Revolta de Búzios (Revolta dos Alfaiates ou Conspiração Baiana), por meio dos chamados boletins sediciosos, passados de mão em mão ou colados nas paredes dos imóveis, em um levante contra o poder colonial português.
A iniciativa de O Homem de Cor é a continuidade das sementes plantadas pelos revoltosos de Búzios do século 18 e demais rebeliões negras, cujos frutos florescem nos dias de hoje, nos textos escritos por jornalistas negros, seja nos veículos comerciais, na imprensa alternativa, nos coletivos de comunicação comunitária, nas mídias antirracistas e também nos discursos sonoros e imagens geradas por pessoas negras que circulam nas telas de cinema, na televisão, e que viralizam nas plataformas e redes sociais digitais.
São por esses meios que continuarão a ecoar o grito por liberdade, que passa necessariamente pela ocupação de espaços de poder e de decisão na democracia institucional, como é o Supremo Tribunal Federal.
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