André Santana

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Opinião

No BBB24, Fernanda vê Davi como o tipo de negro que os brancos não gostam

A escravidão de base racista implantada no Brasil pelo colonialismo europeu deixou como herança pensamentos como o da participante Fernanda do Big Brother Brasil, edição 2024. Para a carioca, o lugar de pessoas como Davi é ocupando funções de baixa remuneração e desvalorização social.

Em conversa com a amiga Giovanna Pitel, na madrugada de ontem (28), Fernanda demonstrou seu incômodo com o favoritismo do baiano e sugeriu: "Vai arrumar um emprego de segurança em um prédio, não fod*".

Na divisão racial do trabalho, o sonho compartilhado inúmeras vezes no programa por Davi de se tornar médico esbarra no imaginário social racista de que pretos e pobres não podem ocupar profissões de prestígio e bons salários.

Da mentalidade racista alimentada pelas memórias da escravidão, passando pela fala "descontraída" e sincera de Fernanda, chegando às práticas excludentes do mercado de trabalho, é formado o ciclo de eliminações ao qual estão sujeitos jovens negros, impedidos de trilhar caminhos de prosperidade profissional e econômica.

Leidy também recebeu ofensas racistas

Na semana passada, o cantor e compositor Manno Góes utilizou sua conta no X (antigo Twitter) para supor o futuro de alguns participantes do BBB24, após a saída do programa. Sobre a trancista Leidy Elin, o autor de sucessos do Carnaval da Bahia sugeriu:

"Talvez seja contratada para trabalhar numa fazenda de Ronaldo Caiado, quem sabe? Todo escravocrata precisa de uma capataz", escreveu Manno Góes, em referência ao governador de Goiás Ronaldo Caiado (União Brasil), que teve um familiar ruralista incluído em uma lista suja de empregadores flagrados com trabalho escravo pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Após embates com o participante Davi, Leidy sofreu diversos ataques racistas nas redes sociais. Muitos a acusaram de agir como mucama, pela forma que ela tomou partido e defendeu as participantes famosas da edição, Wanessa Camargo e Yasmin contra o motorista de aplicativo.

Mucama e capataz são duas funções típicas da dinâmica colonial escravista direcionada a pessoas negras que gozavam de certa confiança dos proprietários de escravizados.

As mucamas desenvolviam tarefas mais próximas às sinhás na Casa Grande, incluindo a de ama de leite. Já os capatazes agiam na fiscalização do trabalho dos escravizados e impediam as tentativas de fuga, ocupações ainda comuns no país de tantos casos de trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão.

O racismo impede o desenvolvimento do Brasil

Para a coluna, o economista Elias Sampaio, mestre em Economia e doutor em Administração, explicou o quanto essa mentalidade racista, impregnada no inconsciente dos indivíduos e na coletividade, condicionam funções de subalternidade que impedem o crescimento das pessoas negras e o desenvolvimento de todo o país.

"O Brasil é subdesenvolvido por causa do racismo. Antes de ser uma pauta identitária, a questão racial é 'a' pauta crucial para o desenvolvimento econômico do Brasil", defende Elias Sampaio, autor dos livros 'Dialogando com Celso Furtado' (Hucitec Editora, 2019) e 'Política, Economia e Questões Raciais' (Edifba, 2017).

Sampaio explica que as funções sem valor de mercado, atribuídas a Davi e Leidy como forma de ofensas, se aproximam das mesmas dinâmicas do regime de escravidão.

"Para efetividade do racismo institucional é preciso que haja sempre dois tipos de negros: aqueles que os brancos gostam, que são de confiança e que podem exercer funções dentro das casas, às quais é confiado o cuidado dos filhos e da própria casa e sabem que nada de ruim vai acontecer. E há aqueles que devem ser adestrados para realizar as tarefas no lugar institucionalmente controlado, como é o caso do setor de segurança, os porteiros e mesmo os policiais".

Ele lembra que há, óbvio, brancos aliados à luta antirracista, mas que mesmo sobre esses age uma força maior, a branquitude, que faz com quem haja racismo mesmo entre os progressistas da esquerda, como Manno Goes. "A branquitude é maior que a pessoa branca, mas isso não tira a responsabilidade do indivíduo em não ser racista", ressalta Elias Sampaio, que foi secretário da Promoção da Igualdade Racial do Governo da Bahia, entre 2011 e 2014.

O ódio ao negro que não se enquadra

Para Elias, o controle institucional sobre essas funções é o mesmo que havia em torno do canavial, que dependia sempre de uma 'escravização mental'.

"A Leidy passou confiança às brancas da casa. Já Davi vai de encontro a este estereótipo do negro preferido pelos brancos. O ódio é porque ele é ousado, viril, bonito, inteligente, e não se submete à lógica racista que querem o enquadrá-lo", destaca Sampaio.

Elias Sampaio é economista e pesquisador das relações raciais no Brasil
Elias Sampaio é economista e pesquisador das relações raciais no Brasil Imagem: Divulgação

O pesquisador, que acompanha as relações raciais no mercado de trabalho e na economia há quase três décadas, compara o incômodo com Davi na casa do BBB24 ao ódio que coloca os jovens negros como principais alvos da violência e das mortes no Brasil, justamente quando estão no período de maior força, produtividade e condições de competitividade com os brancos.

"No Brasil, os brancos têm pavor aos negros que não estão nem aí para serem os negros que eles gostam. Esse é o grande incômodo causado por Davi: não se submeter e nem tentar agradar aos brancos", defende.

Por essa lógica, no regime escravista, Davi não despertaria confiança dos seus senhores e, ao invés de ser capitão do mato ou desempenhar funções na Casa Grande, estaria condicional ao canavial, tomando muito açoite para ser controlado.

Também seria dali que poderia mobilizar afrontas, rebeliões, fugas e formações de quilombo.

No contexto atual, se continuar com o ímpeto que tem demonstrado nos mais de cem dias dentro da casa, o baiano de apenas 21 anos não aceitará ser restrito às ocupações sugeridas por pessoas preconceituosas como Fernanda e continuará a traçar seu futuro, com liberdade, autonomia e de forma destemida.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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