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Opinião

Trump repete com Kamala o que Jânio falou de Erundina

"Kamala não será a primeira mulher presidente. Não vamos ter uma presidente socialista, especialmente se for mulher."

A frase peremptória de Donald Trump, ao saber que enfrentaria Kamala Harris e não Joe Biden em novembro, nem chega a ser original.

No dia 15 de novembro de 1988, ao sair de sua casa no Morumbi, em São Paulo, e entrar no carro de prefeito para votar nas eleições municipais, o ex-presidente Jânio Quadros ficou furioso quando os repórteres lhe perguntaram sobre a surpreendente subida de Luiza Erundina nas pesquisas, já empatada tecnicamente com Paulo Maluf.

"Não ad-mi-to", repetiu três vezes. "Mulher não vai ser prefeita de São Paulo nunca. Ainda mais esta Erundina..."

Solteira, migrante nordestina e ativista de esquerda, Luiza Erundina de Souza, paraibana de Uiraúna, era a antítese dos seus adversários homens, todos tradicionais políticos da elite paulistana.

Apuradas as urnas, que ainda não eram eletrônicas, Erundina foi eleita a primeira prefeita da história de São Paulo, para desgosto dos paulistanos quatrocentões. Com 33% dos votos (ainda não havia segundo turno), deixou para trás Maluf (24%) e João Leiva, que era apoiado por Jânio e ficou em distante terceiro lugar.

Por que me lembro destes fatos de quase meio século atrás? Foi porque encontrei muitas semelhanças entre Erundina e o furacão Kamala Harris, que em menos de uma semana assumiu o protagonismo na campanha eleitoral dos Estados Unidos, após a desistência de Joe Biden.

A exemplo de Paulo Maluf em 1988, empresário milionário como ele e com muitos problemas na Justiça, Donald Trump também já se considerava eleito. A volta à Casa Branca seria um passeio depois do debate em que massacrou o democrata Joe Biden.

O fato novo e inesperado foi a entrada em cena de Kamala. Assim como uma greve na Companhia Siderúrgica Nacional, na distante Volta Redonda (RJ), quando o Exército matou três operários, mudaria radicalmente o cenário na eleição paulistana em poucos dias.

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Baixinha e atarracada, o oposto da esguia e imponente Kamala, a sindicalista paraibana Erundina, fundadora do PT ao lado de Lula, foi à luta, em defesa dos operários de Volta Redonda e na denúncia das violências praticadas pelo Exército durante a invasão da usina, apenas três anos após o enterro da ditadura militar.

E, assim, a mulher que Jânio não admitia ver em sua cadeira na Prefeitura virou o jogo em poucos dias. Durante toda a campanha, ela vinha em terceiro lugar, bem atrás de Maluf e Leiva, numa campanha muito modesta conduzida pela militância petista nas periferias. A vitória de Erundina seria atribuída pelos analistas da época à repercussão das mortes em Volta Redonda. Política tem disso: é um jogo absolutamente imprevisível que pode ser decidido pelo imponderável, mais por símbolos do que por palavras ou programas.

Em novembro, quando os eleitores americanos forem às urnas, Erundina completará 90 anos, já no seu sétimo mandato de deputada federal, como a decana do Congresso Nacional, sem nunca ter negado suas origens e princípios. De Maluf e Leiva nunca mais se ouviu falar.

Outra semelhança entre a trajetória de vida tão dessemelhante de Erundina e Kamala: as duas são boas de discursos e debates, boas de briga, sem medo de cara feia. No mundo tão machista e misógino como a política, ambas ainda são flores raras, pioneiras na conquista de espaços, mas isso também está mudando, para o bem da humanidade.

Entre ditadura e democracia, não dá para ser neutro, ficar em cima do muro. E é isso que está em jogo neste momento, nos Estados Unidos, na França, no Brasil, na Venezuela, em toda parte. Figuras como a sempre sorridente Kamala Harris são um sopro de vida e de luz, em meio às trevas do passado que custam a largar o osso. Há esperanças...

Vida que segue.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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