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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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É erro decretar fim da pandemia como quer Bolsonaro, dizem cientistas

22.mar.2021 - Jair Bolsonaro coloca máscara durante evento no Planalto - Ueslei Marcelino/Reuters
22.mar.2021 - Jair Bolsonaro coloca máscara durante evento no Planalto Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

Colunista do UOL

16/03/2022 18h04

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Em entrevista à TV Ponta Negra (RN), o presidente Jair Bolsonaro (PL) anunciou hoje que o Ministério da Saúde vai baixar uma portaria "decretando" o fim da pandemia no Brasil.

Fora o erro conceitual —já que é a OMS (Organização Mundial de Saúde) que decreta e retira o status pandemia—, a medida é condenada por cientistas ouvidos pela coluna. Segundo eles, isso afetaria a forma como a epidemia é combatida no Brasil —do financiamento de ações de saúde pública ao controle de fronteiras.

Embora estejamos em queda nos números, a epidemia no Brasil não acabou. Prova disso é que a covid-19 continua sendo a doença que mais mata no país.

Além disso, pesquisadores alertam que não temos cobertura vacinal segura para classificar a covid-19 como uma doença endêmica, por exemplo, como é a gripe.

Efeitos de um decreto de fim da pandemia

Na prática, uma doença se torna uma pandemia quando atinge vários continentes de forma intensa. Quando uma enfermidade é classificada dessa forma, países adotam uma série de medidas específicas para combatê-la. Já a endemia, por sua vez, envolve doença que, embora tenha frequência acima do esperado em uma região, convive com a população de forma contínua

Decretar o fim de pandemia seria acabar com o nosso estado de emergência nacional em saúde pública, que é o que justifica uma série de medidas sanitárias restritivas em âmbito nacional, de acordo com a lei da quarentena aprovada no início da pandemia em 2020."
Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP

Apesar de parecer uma retórica burocrática, o especialista diz que a medida tem um efeito prático "muito grande".

"O fim desse estado de emergência em saúde pública possibilita o fim de todas as medidas, inclusive de financiamento, para combate à pandemia. Você desarma todo o aparato jurídico, administrativo e institucional mobilizado em decorrência dela. Se a emergência deixou de existir, o aparato que envolve recursos, mobilização de servidores públicos, etc. deixa de funcionar também."

O debate sobre o fim da pandemia não está em pauta na OMS em um momento em que países da Europa e a China veem aumento de casos. "É muito cedo para cantar vitória. Ainda há muitos países com baixa cobertura vacinal e alta transmissão", afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, no dia 2 de março.

A bióloga e fundadora e do Instituto Questão de Ciência, Natália Pasternak, explica que não há como um país decidir pelo fim da pandemia e diz que o presidente erra ao fazer a declaração.

"O que o governo brasileiro pode fazer é decretar o fim das medidas emergenciais de combate ao SARS-CoV-2. Mas isso é uma decisão do Ministério da Saúde que não tem a ver com o fim da pandemia. É algo que o governo pode fazer? É, mas vai ter que se justificar. Agora não tem como um único país determinar que a doença não é mais pandêmica", ressalta.

Alcides Miranda, professor de Saúde Pública da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), explica que existe diferença técnica nas classificações de epidemia e endemia —e isso impacta na forma como a doença é combatida.

"A distinção está na abrangência dos circuitos de transmissibilidade. Uma pandemia equivale a uma epidemia que extrapola limites internacionais e pode se difundir de modo mais célere. O monitoramento precisa ser coordenado, os controles eventuais (portos, aeroportos, fronteiras, etc.) precisam ser efetivos, diferente das endemias."

Depois de tudo o que ocorreu no Brasil, soa tragicômico [rebaixar o status]. Quem lida hoje com a situação transicional são as secretarias estaduais e municipais de Saúde, não o Ministério da Saúde."
Alcides Miranda, professor de Saúde Pública da UFRGS

Covid lidera mortes no Brasil

Apesar da queda de óbitos e casos há algumas semanas, a covid-19 ainda é a principal causa de morte no Brasil, segundo os dados mais recentes dos cartórios de registro civil.

As principais causas de óbito registradas no portal da Transparência em fevereiro foram:

  • Covid - 18.938
  • Pneumonia - 14.267
  • Septicemia - 12.380
  • AVC - 7.919
  • Outras cardiovasculares - 7.597
  • Infarto - 7.408
  • Insuficiência respiratória - 5.937

Para o microbiologista e divulgador científico Átila Iamarino, a "pandemia certamente não acabou".

Ele alerta que o cenário é de incerteza porque não há controle de como serão as próximas variantes do coronavírus. "Isso dificulta muito a gente bater o martelo de que a pandemia, entre aspas, acabou", diz.

Iamarino cita como exemplo o final de janeiro, quando o número médio de mortes entre as pessoas com mais de 80 anos, segundo o sistema SIVEP-Gripe, foi de 300 por dia.

"São números similares a um dos piores momentos de 2020. Não se compara com 2021, claro, mas ainda são números muito altos. Para quem tem mais de 80 anos —sem falar de imunocomprometidos ou quem tem menos de cinco anos— ainda existe um risco alto", afirma.

Falta vacinar mais

Outro ponto sempre ressaltado para os riscos que os brasileiros correm é a baixa cobertura vacinal de pessoas que tomaram a dose de reforço.

Desde o início da campanha, 74% da população recebeu duas doses ou dose única, mas pouco mais de 70 milhões de pessoas tomaram a dose de reforço (30% da população).

O presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações, Juarez Cunha, pontua que esse é um aspecto importante a ser ponderado ante a ideia anunciada por Bolsonaro.

"O primeiro deles é que, com certeza, precisamos melhorar nossas coberturas vacinais, estimular que as pessoas façam a dose de reforço —que é fundamental para proteção em especial das formas graves da doença", diz Cunha.

Ele lembra ainda que o momento é de alerta novamente no mundo com a alta de casos e hospitalizações na Europa e na Ásia, em especial por causa do avanço da subvariante da ômicron, a BA.2 —considerada mais transmissível e com maior poder de reinfecção.

"Não dá pra deixar de considerar também a possibilidade de novas variantes, como tem sido relatado inclusive aqui no Brasil, como a deltacron", completa Cunha.

Mesmo que venha a se tornar endemia, a professora de doenças tropicais da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Vera Magalhães, diz que será necessário manter cuidados e medidas de prevenção para evitar mortes.

"A epidemia sendo superada, a doença endêmica ainda traz muitos desafios. Temos como doença endêmica tuberculose, gripe. Não precisa ser uma pandemia para ser uma preocupação. E, para que haja superação dessas doenças infecciosas como um todo, é necessário haver a oferta de vacina, assim como a melhoria da qualidade de vida da população", afirma ela.