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Verba federal para obras de contenção de encostas cai 96% em 10 anos
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O valor autorizado pelo governo federal para apoio a execução de projetos e obras de contenção de encostas em áreas urbanas em 2021 caiu 96% em comparação aos números de 2012.
Depois de um início de década passado com investimentos mais altos na área, o governo federal derrubou os recursos a partir de 2015, ainda na gestão Dilma Rousseff (PT). Desde então, os valores se mantêm bem mais baixos que na primeira metade da década passada.
Segundo os dados, o governo autorizou, em 2012 (também na gestão Dilma), R$ 997 milhões, em valores atualizados pelo IPCA, considerada a inflação oficial. O valor foi sendo encolhido até chegar a R$ 36 milhões, em 2021. O menor valor foi em 2017 (R$ 33 milhões), no governo Michel Temer (MDB).
Os dados foram levantados pela coluna no sistema Siga, do Senado Federal, que tem como base o Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal).
Para consulta, foi usada a rubrica 8865, onde estão os recursos especificados para "Apoio a Execução de Projetos e Obras de Contenção de Encostas em Áreas Urbanas".
O investimento em 2012 foi uma resposta do governo, à época, após a tragédia da região serrana do Rio, em 2011, que deixou 905 mortos e foi o maior número de vítimas da história do Brasil.
Em resposta à coluna, o MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) afirma que, além da rubrica 8865, há outras quatro que destinam verbas para obras de prevenção a tragédias, mas não diretamente em encostas. "Portanto, a rubrica do Programa 8865 não é a única voltada a prevenção de desastres naturais no MDR", diz o texto.
"Desde 2019, foram investidos mais de R$ 2,7 bilhões em ações de prevenção de desastres naturais em todo o país", afirma a pasta
Além disso, o MDR diz que "a Secretaria de Saneamento aprova financiamentos por meio do FGTS [Fundo de Garantia do Tempo de Serviço] para empreendimentos de manejo de águas pluviais (macrodrenagem), que também são destinados a prevenção de desastres (alagamentos, enchentes etc). Desde 2019, foram pagos mais de R$ 413,8 milhões".
Menos verbas, novas tragédias
Com menos obras para conter encostas, este ano o país já viveu três tragédias por deslizamento de barreiras: duas no Rio de Janeiro e, no fim de semana passado, as mortes no Grande Recife.
Em fevereiro, Petrópolis teve um saldo de 233 mortes por conta de deslizamentos. Em abril, foi a vez de deslizamentos em Paraty (a 240 km da capital) e Angra dos Reis (a 156 km do Rio) matarem 16 pessoas.
Na semana passada, as chuvas levaram a deslizamentos de barreiras no Grande Recife e deixaram ao menos 100 mortos. O número de desaparecidos ainda é incerto.
Este ano, segundo dados do orçamento federal, até abril o valor autorizado chega a R$ 41 milhões —ou seja, já supera o total de 2021.
Segundo o professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e presidente da Febrageo (Federação Brasileira de Geólogos), Fábio Reis, o Brasil tem historicamente deixado de lado o investimento de prevenção. "A gente só tem agido em resposta a grandes acidentes. E remediar é sempre mais caro que prevenir", diz.
Ele explica que o acidente na região serrana do Rio, em 2011, levou o país a criar, um ano depois, uma política de prevenção de desastres. "Nós tivemos um investimento muito forte de 2011 até 2014 e 2015, com o Ministério das Cidades liderando isso e com a criação do Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais]", conta.
Na época do Ministério das Cidades, havia até um manual para orientar gestores sobre o programa, que tinha como objetivo "promover um conjunto de ações estruturais e não estruturais visando à redução dos riscos de deslizamentos em encostas de áreas urbanas".
O Ministério das Cidades foi extinto em 2019, quando o presidente Jair Bolsonaro (PL) assumiu a Presidência, junto com outras pastas. A maioria das atribuições dele foi para o MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional).
Outro ponto que também chama a atenção no cenário atual é a queda de recursos, ao longo dos anos, do Cemaden. Em fevereiro, o UOL revelou que o órgão teve, em 2021, o menor orçamento de sua história e, por isso, deixou de realizar manutenções e paralisou estações de monitoramento.
Nessa primeira década de 2010, afirma Reis, o país conseguiu fazer um bom mapeamento geotécnico para que as cidades pudessem conhecer melhor seus territórios.
"A partir dessas cartas geotécnicas você começa a implantar obras de engenharia porque sabe onde tem de atuar, conhece melhor as áreas de maior risco: sabe lugares que você resolve com obras e os que você tem que tirar a população", explica.
Hoje, diz, mesmo que as cartas estejam um pouco desatualizadas, elas ainda são um referencial importante e devem ser usadas para nortear ações na área.
Esse tipo de problema tem solução, mas é necessário investimento de longo prazo. Não adianta fazer esse investimento por um, dois, cinco anos e parar. É necessário investir por 30, 40 anos seguidos
Fábio Reis, Febrageo e Unesp
Poder público longe
Segundo a engenheira civil e sanitária pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Kátia Mello, a ausência do poder público com ações mínimas nessas ocupações denota uma "invisibilidade dessa população".
"Hoje, ela representa entre 10% a 20% —ou mais— do total de moradores de uma grande cidade e regiões metropolitanas", afirma ela, que é copresidente da empresa Diagonal —que atua com trabalho social em comunidades em situação de vulnerabilidade.
"Há uma cultura também no poder público do Brasil de que a ausência de recursos para obras estruturantes —de maior custo— inibe a presença do poder público nesses locais vulneráveis", completa.
Para ela, se as obras paliativas já não são feitas como deveria, os cortes de investimento nessas áreas afetam as ações que poderiam solucionar boa parte dos problemas. "A ausência dessas medidas estruturais de engenharia ligadas à drenagem efetiva e contenção de taludes amplificam os riscos de ocorrência de deslizamentos", diz.
Um outro fator relevante, afirma ela, é que a restrição de recursos está muito associada à falta de continuidade das ações, não somente das medidas estruturais. "[Atinge] também as medidas não estruturais, como o fortalecimento das ações dos órgãos de gestão urbana".
No caso do Recife, segundo ela, é preciso seguir com ações para enfrentar esses riscos, já que não é possível retirar algo em torno de 1/3 da população que vive nos morros.
Não há como gerir essa cidade confinada entre o mar e os morros sem considerar sua veia hídrica. É preciso saber conviver com a água e com sua conformação geológica e com a realidade da ocupação do seu território.
Kátia Mello, engenharia civil e sanitária
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