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Carlos Madeiro

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REPORTAGEM

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No fim, governo Bolsonaro compra cisternas de plástico mais caras para o NE

Cisternas de polietileno que serão compradas pela Funasa - Reprodução/vídeo
Cisternas de polietileno que serão compradas pela Funasa Imagem: Reprodução/vídeo

Colunista do UOL

01/12/2022 04h00

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A Funasa (Fundação Nacional de Saúde) realizou um pregão eletrônico e selecionou duas empresas para comprar 66,9 mil cisternas de plástico, no valor total R$ 814 milhões. Elas devem ser instaladas em municípios da zona rural no semiárido do Nordeste e de Minas Gerais.

As cisternas desse tipo, fabricadas em polietileno, são alvo de muitas críticas no Nordeste e custam o dobro dos equipamentos tradicionais, feito de placas de concreto.

Pelo pregão, o preço médio de cada cisterna ficou em R$ 13 mil, enquanto a de placas sai hoje por R$ 6.300, usando trabalhadores locais na obra e dando curso de manutenção e reparo à família contemplada.

Além disso, em 2012 o governo federal já havia comprado cisternas semelhantes, que apresentaram problemas e até deformaram sob o calor intenso do semiárido. Após as críticas, o governo cancelou a compra e voltou a implantar apenas cisternas de placas.

Outro ponto questionado é que elas são equipamentos prontos, diferentemente das cisternas construídas, que geram renda na comunidade pela compra de material e contratação de mão de obra local.

A data do contrato também chama a atenção, já que o contrato tem validade de 12 meses e vai adentrar no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), eleito em outubro. A coluna apurou que o caso está sendo analisado pelo grupo de transição (veja mais abaixo).

Como se trata de pregão de preços, o governo não tem obrigação de comprar todos os equipamentos. Entretanto, a aquisição só ocorrerá pelo preço e com as empresas que venceram a concorrência.

Ao longo dos últimos anos, o governo foi deixando de lado a construção de cisternas, chegando a praticamente zerar o orçamento para construção dos equipamentos no programa Cisternas, do Ministério da Cidadania.

Em junho, entregou apenas 18 equipamentos, o recorde negativo desde que ele foi lançado, no final de 2003.

Para 2023, o PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) enviado por Bolsonaro ao Congresso traz um orçamento ainda mais reduzido: R$ 2.283.326, o que paga menos de 500 equipamentos —que custam em média R$ 5.000 entre mão de obra e material.

O que diz a licitação e por que é alvo de críticas

No objeto da licitação, o governo especifica que quer comprar "reservatórios cilíndricos monolíticos em polietileno para acumulação de 16.000 mil litros de água de chuva" —o mesmo tamanho das cisternas de placas.

Apesar de pedir garantia de dez anos e declaração de vida útil de 20 anos, a Funasa cobrou das empresas uma declaração de que "os reservatórios que apresentarem defeitos e deformações serão removidos pelo fabricante e substituídos no prazo máximo de 30 dias corridos, sem custo para a contratante".

A coluna entrou em contato com a Funasa para que explicasse o porquê da escolha desse tipo de cisterna mais cara e se já havia sido empenhado algum valor para as aquisições, mas não obteve retorno.

O coordenador-executivo da ASA (Articulação do Semiárido, organização que congrega mais de 3.00 entidade da região) no Ceará, Marcos Jacinto, reclama da forma como a licitação foi feita, sem qualquer conversa com a população ou entidades. "A gente foi pego de surpresa com esse edital com uma tecnologia à qual somos contrários", diz.

Cisterna deformada no sertão do Ceará em 2012 - ASA - ASA
Cisterna deformada no sertão do Ceará em 2012
Imagem: ASA

"Esse tipo de cisterna já foi colocada aqui em uma fase de teste e não deu certo. Ele deixa de lado a metodologia do programa de uma política pública eficaz e premiada. Ela chega pronta e colocada lá, diferentemente das nossas cisternas de placas, que leva em conta todo o processo de formação e mobilização da comunidade", completa.

'Programa caro e com tecnologia questionável'

O pregão feito pela Funasa recebeu um alerta do grupo de transição do governo. A ex-ministra e integrante da equipe Desenvolvimento Social e Combate a Fome Tereza Campello classificou a contratação para compra dos equipamentos como absurda. O caso será citado no relatório de transição, garante.

"A Funasa fez cisterna de placas no 'Brasil sem Miséria' até 2014, e desde então não tinha feito mais nada. Agora lança, no apagar das luzes, um programa caro e com tecnologia questionável. O custo é mais do que o dobro das cisternas implementadas pelo antigo MDS [Ministério do Desenvolvimento Social]. É um absurdo", afirma.

Cisterna instalada em Palmeira dos Índios (AL): de placas e com mão-de-obra local - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
Cisterna instalada em Palmeira dos Índios (AL): de placas e com mão de obra local
Imagem: Beto Macário/UOL

Por que agora? Quem será que leva vantagem com essa ação na surdina? Esse é um dos alertas que o GT de Desenvolvimento Social e Combate à Fome identificou e que ajuda a revelar o legado de aberrações do governo Bolsonaro."
Tereza Campello

Ela lembra ainda que o programa Cisternas é uma referência internacional e foi uma iniciativa da ASA, "comprada" pelo governo federal a partir de 2003.

Somadas as cisternas pagas com verba pública e de entidades, a meta de 1 milhão de cisternas foi alcançada em 2014. Hoje existem na região mais seca do Brasil 1,2 milhão de cisternas construídas.

O programa recebeu prêmios internacionais como o Prêmio Sementes 2009, da ONU (Organização das Nações Unidas), concedido a projetos de países em desenvolvimento feitos em parceria entre organizações não governamentais, comunidades e governos. Também recebeu também a premiação "Future Policy Award" (Política para o Futuro), em 2017, da World Future Council, em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação.

"O governo Bolsonaro abandonou o Nordeste e o semiárido e negligenciou o programa de cisternas por quatro anos. Programa reconhecido como eficiente e inovador pelos órgãos de controle e premiado no mundo", diz Campello.