Carlos Madeiro

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Mortes, trincheiras e medo: entenda o avanço da 'guerra do dendê' no Pará

Episódios de violência contra indígenas e quilombolas elevaram a tensão na região nordeste do Pará, onde está em curso a chamada "guerra do dendê".

O que está acontecendo

Na região, pelo menos oito pessoas foram mortas desde 2012. Três atentados praticados desde maio deste ano que deixaram cinco feridos e levaram o Ministério da Justiça a autorizar o envio da Força Nacional de Segurança Pública à área.

A região é marcada por tensão. Mas o medo dos moradores cresceu nos últimos meses por conta de ações de reocupação das terras pelos povos tradicionais amazônicos e da resposta dada por duas empresas que têm fazendas nos locais reivindicados.

Para conter o ingresso nas terras que têm posse, as empresas adotam estratégias como a colocação de barreiras em pistas e cavam trincheiras para dificultar o acesso desses povos às terras em litígio. Também há cada vez mais seguranças armados e telemonitoramento.

Barreiras montadas nas fazendas da Agropalma impedem passagem de veículos
Barreiras montadas nas fazendas da Agropalma impedem passagem de veículos Imagem: Arquivo pessoal

Por que a guerra

A região nordeste do Pará concentra quase 90% da produção de dendê do país. As plantações ocupam área de 200 mil hectares.

A disputa no local tem origem histórica ainda nos anos 1980, quando os primeiros empreendimentos começaram a se instalar e chegar no local, expulsando moradores.

Desde a década passada, essas comunidades tradicionais quilombolas e indígenas se organizaram e passaram a reivindicar a posse do território.

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Hoje, parte do território disputado está em posse de duas empresas nos municípios de Acará, Tomé-Açu e Tailândia. São elas: BBF (Brasil Biofuels) e Agropalma S.A.

Segundo os dados das entidades locais, 75% da área das fazendas da BBF são reivindicadas pelo quilombo Nova Betel. O território quilombola da Amarqualta também tem terras da BBF.

No caso da área da Agropalma, 72% dela está sobreposta às áreas reivindicadas por comunidades indígenas e quilombolas do rio Acará.

A Arqva (Associação dos Remanescentes de Quilombos da Comunidade de Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila dos Palmares do Vale do Acará) ingressou com um processo em 2016 pedindo reconhecimento da área no Iterpa (Instituto de Terras do Pará), mas ainda não há resultado da análise.

Comunidade Quilombola Nova Betel ilhada pelas plantações de palma
Comunidade Quilombola Nova Betel ilhada pelas plantações de palma Imagem: Cícero Pedrosa Neto/Relatório "A Sobram do Dendê/Global Witness
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A empresa é acusada de impedir ou dificultar acesso de moradores ao rio Acará e a locais históricos, como aos quatro cemitérios que guardam restos mortais de ancestrais que está dentro do território reivindicado. A empresa nega (veja mais abaixo).

Moradores da vila Turiaçu filmam momento em que empresa Agropalma cava uma trincheira
Moradores da vila Turiaçu filmam momento em que empresa Agropalma cava uma trincheira Imagem: Reprodução

Às 3h [de terça, 22], uma pessoa viu que estavam abrindo um buraco dentro da vila. A empresa mandou cavar uma vala na última rua da vila Turiaçu, colocando em risco a vida as pessoas. Estamos cercados, coagidos. Pedimos pra eles virem tapar essa vala imensa. Pessoas podem cair e morrer nesse buraco.
Hilda Turiwara, contra a Agropalma

Feridos na disputa

Este ano, houve conflitos e moradores e entidades reclamam do uso de violência por parte da BBF. Foram ao menos três episódios:

  • 14 de maio - Cacique Lúcio Gusmão Tembé é baleado. Ele é uma das principais lideranças da aldeia Ture-Mariquita, em Tomé-Açú.
  • 4 de agosto - Indígena filho do cacique Urutau Tembé, da aldeia Bananal, é alvejado a tiros. A Associação Indígena Tembé Vale do Acará diz que o disparou veio de grupo com PMs e seguranças da BBF.
  • 7 de agosto de 2023 - Três indígenas Tembé são baleados ao protestarem contra a repressão policial para expulsar indígenas e quilombolas das áreas reocupadas e autodemarcadas.
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Indígenas da etnia Tembé, moradores da comunidade Turé Mariquita (PA), protestam em frente à delegacia
Indígenas da etnia Tembé, moradores da comunidade Turé Mariquita (PA), protestam em frente à delegacia Imagem: Divulgação/CNDH

A escalada da violência chamou a atenção de entidades. A ABA (Associação Brasileira de Antropologia) mandou ofício no dia 9 endereçado aos ministros Flávio Dino (Justiça), Sonia Guajajara (Povos Indígenas) e Silvio de Almeida (Direitos Humanos), além do governador Helder Barbalho (MDB) e o procurador-Geral da República, Augusto Aras.

A região vive um contexto de violência extrema no qual indígenas das etnias Tembé e Turiwara e quilombolas são as vítimas.
Andréa Luisa Zhouri, presidente da ABA

Nesse litígio, a ABA afirma que desde 2012 cinco quilombolas e três indígenas foram mortos na região.

O fato também chamou a atenção do MPF no Pará, que pediu a presença da Força Nacional de Segurança Pública —que foi endossado por Aras.

O MPF cita que a Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará relatou que a Terra Indígena Turé-Mariquita sofre com rejeitos químicos despejados no principal igarapé que abastece as aldeias. A culpada seria a BBF.

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No ofício enviado ao MPF, eles alegam que, além da extração da mata nativa, eles usam as ações como estratégia de intimação das comunidades tradicionais da localidade.

A equipe de segurança armada privada da empresa BBF tem utilizado ameaças, inclusive com participação de força policial pública local, também mencionando o registro excessivo de boletins de ocorrência, entendido pela referida instituição como tentativa de criminalização das lideranças indígenas.
Documento do MPF

O ofício afirma ainda que, desde 2020, a BBF fez "centenas de registros de boletins de ocorrência" em que acusam os povos de roubos, furto do dendê e dano patrimonial. Os moradores reclamam de que a empresa tenta os criminalizar.

Protesto contra a BBF no dia 7 de agosto em frente ao fórum de Tomé Açu (PA)
Protesto contra a BBF no dia 7 de agosto em frente ao fórum de Tomé Açu (PA) Imagem: Karina Iliescu/Global Witnes

O UOL contatou o Ministério da Justiça para saber quando haverá o envio das tropas e qual o plano de operação, mas não obteve retorno.

Já a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará informou que as forças de segurança seguem "atuando dentro das suas atribuições, a exemplo do reforço das ações ostensivas nas áreas dos municípios, visando manter a ordem pública e segurança de todos."

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Informa ainda que, por meio da Polícia Judiciária, segue com inquéritos instaurados para apuração de crimes ocorridos na região, e assim, responsabilizar os envolvidos.

Histórico de 40 anos de litígio

Segundo Elielson Pereira da Silva, professor da Universidade Federal Rural da Amazônia e pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA (Universidade Federal do Pará), o problema surge quando empresas compram e ocupam territórios de forma questionável.

Existe uma legislação fundiária no estado que prevê uma preferência em relação a destinação das terras públicas para indígenas e quilombolas. E a maior parte da Agropalma ainda se caracteriza como patrimônio no estado.

No caso dessa empresa, das cinco comunidades que reivindicam a terra, quatro estão "desterritorializadas".

Elas saíram compulsoriamente desde os anos 1980 quando esse grande empreendimento se implantou. Isso foi antecedido e teve práticas violentas, que resultou no deslocamento compulsório.

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Vila Gonçalves, comunidade ilhada pelas plantações de palma da Agropalma
Vila Gonçalves, comunidade ilhada pelas plantações de palma da Agropalma Imagem: Cícero Pedrosa Neto/Relatório "A Sobram do Dendê/Global Witness

Em conversa com a coluna, o diretor de Sustentabilidade da Agropalma, Tulio Dias Brito, afirma que a empresa adquiriu suas terras de forma legal. Para todos os casos, diz, há comprovantes de pagamentos das aquisições.

Sobre a área reivindicada pela Arqva, cita laudo do Iterpa que atesta que as comunidades que pleiteiam as terras não são reconhecidas como quilombolas.

A empresa diz ainda que os membros desta associação podem ter acesso ao cemitério, e para isso ficou acertado que as entidades devem informar nomes de quem tem interesse em visitar, e que a lista consta nos portões de acesso da área.

A empresa admite colocar barreiras para dificultar acesso, como as trincheiras, mas diz "não existe guerra do nosso lado."

Evitamos sempre qualquer tipo de conflito. Para prevenção, construímos barreiras físicas como medida para segurança física e psicológica dos nossos 5 mil colaboradores que trabalham no local —inclusive dos invasores—, além da proteção de nossas reservas florestais. Mas nunca faz nenhum xingamento ou aponta uma arma para eles. A empresa é pacífica.

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Após a publicação da matéria, a Agropalma enviou nota afirmando que "não há nenhum caso de violência ou morte na região associado à empresa." Diz ainda que as barreiras instaladas "não impedem o direito de ir e vir nem dificultam o acesso das pessoas às estradas."

As estruturas foram construídas nas terras pertencentes à Agropalma e não estão em nenhuma área de servidão ou passagem pública. Além disso, o espaço está integralmente revestido por telas e estruturas que evitam a aproximação de pessoas ou animais, prevenindo o risco de quedas ou acidentes nesses locais.
Agropalma, em nota

Apesar de informar que iria se posicionar, a BBF não respondeu á reportagem.

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