Prédios-caixão: ação bilionária deve 'enterrar' história de 54 mortes em PE
Uma história de desabamentos, mortes e medo de quem viveu ou vive nos prédios-caixão no Grande Recife parece estar perto do fim. Um acordo que envolve aporte de R$ 1,7 bilhão promete desocupar os 133 edifícios com risco altíssimo de colapso ainda este ano e indenizar proprietários com até R$ 120 mil. Já quem ocupa e não detém posse, vai receber um aluguel social e entrar na fila de habitação social.
Os prédios-caixão foram erguidos a partir dos anos 1970 na expansão urbana e começaram a apresentar problemas nas cidades de Recife, Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Paulista. Eles apresentaram problemas estruturais, resultando em desabamentos e ao menos 54 mortes desde 1977.
Segundo o Itep (Instituto de Tecnologia de Pernambuco), cerca de 5.700 prédios foram construídos nesse modelo no Grande Recife. Desses, 431 estão em risco alto ou muito alto de desabamento, e a maioria já está desocupada —com proprietários há anos tentando uma solução.
O problema da má construção acabou abarrotando o Judiciário pernambucano de ações: ao longo de 30 anos, a Justiça recebeu cerca de 8.000 processos de proprietários questionando vícios na construção.
Em 2021, TRF-5 (Tribunal Regional Federal da 5ª Região) e o TJ-PE (Tribunal de Justiça de Pernambuco) firmaram um termo de cooperação para otimizar a resolução de processos dos imóveis financiados pelo SFH (Sistema Financeiro Habitacional).
O que diz o acordo
O acordo assinado pessoalmente pelo presidente Lula na segunda-feira (10) estabelece que o governo federal vai colocar R$ 1,7 bilhão em ressarcimento às cerca de 14 mil famílias que têm prédios-caixão com vícios estruturais.
Segundo a secretária de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Pernambuco, Simone Nunes, o problema se arrastou por anos porque havia dois impasses:
- O valor máximo de indenização era de R$ 32 mil, o que inviabiliza acordos;
- Muitos desses prédios estão ocupados por pessoas que não têm para onde ir.
Após uma negociação, governos estadual e federal conseguiram elevar o valor da indenização, fazendo com que o Judiciário homologasse tentativas de acordo que se arrastam há anos.
Sem-teto também serão atendidos
O governo estima que existem 450 famílias que ocuparam e estão morando em prédios condenados.
Existe um inegável problema habitacional, e as pessoas vão para aqueles locais por falta de alternativas, mas há risco. Existe uma característica desses prédios: eles não têm rachadura, eles colapsam sem dar indícios.
Simone Nunes
Para este ano, está prevista a desocupação e demolição de 133 prédios com risco considerado muito alto pelas defesas civis dos municípios. Para os outros 298, serão avaliadas as condições, que podem até apontar a reforma como a melhor opção.
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Quero receberPara as famílias que não têm outra moradia, o governo promete pagar um aluguel até a construção de um imóvel para elas. Ao mesmo tempo, acertou com o governo federal a inclusão delas como prioritárias no programa Minha Casa Minha Vida.
No caso, as famílias podem optar pelos R$ 120 mil, ou serem incluídas no Minha Casa, Minha Vida de forma prioritária para receber uma habitação social.
No acordo, as seguradoras se comprometeram em pagar R$ 28 milhões das demolições, limpeza e preparação dos terrenos, que serão destinados ao poder público —prioritariamente para construção de novas habitações populares.
A solução precisou passar pelo governo federal porque grande maioria desses imóveis foi financiada por bancos públicos, em especial a Caixa Econômica. Com isso, a maioria das apólices também eram públicas —o que trouxe o estado brasileiro para as negociações.
O importante é que colocamos fim às mortes com esse acordo. Vamos ter solução, e os processos de indenização continuarão sendo objeto da justiça. Foi um acontecimento histórico, até porque esse problema vitimava as pessoas mais vulneráveis.
Simone Nunes, secretária de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Pernambuco
Ocupantes relatam medo
Géssica Maria Gomes Da Silva, 28, mora no edifício Camélia, em Jardim Fragoso, periferia de Olinda, há quatro anos.
Ela conta que ocupou o local junto com outras famílias, após proprietários deixarem o prédio por risco de desabamento.
Antes eu morava de aluguel em um quartinho, mas não dava para viver. O aluguel de casas está caro, a partir dos R$ 450 por mês. Ninguém aqui tem condições. A gente vive com medo, mas ficamos porque não temos para onde ir. Quando vem a chuva, é desespero.
Géssica Maria
Segundo Carla Eduarda Luz, líder do Movimento Nacional de Luta Pela Moradia em Pernambuco, existem hoje cerca de 40 prédios ocupados por famílias sem-teto. Ela diz que vai acompanhar o processo do acordo. "É preciso que tenha cuidado com essas famílias, para garantir o direito que elas tem a moradia", diz.
Histórico de mortes
O engenheiro Carlos Wellington Pires Sobrinho, pesquisador do Itep e professor da UPE (Universidade de Pernambuco), acompanha há anos o problema, inclusive computando um histórico de 17 desabamentos totais e parciais de blocos desde 1977.
Incidentes com morte:
- 1977- Edifício Giselle, em Jaboatão dos Guararapes, desabou e deixou 22 pessoas mortas
- 1999- Edifício Éricka, em Jardim Fragoso, em Olinda, desabou matou 5 pessoas
- 1999 - Bloco do edifício Enseada de Serrambi, em Olinda, ruiu e terminou 7 pessoas mortas
- 2023 - Edifício Leme, em Olinda, ruiu e provocou a morte de 6 pessoas
- 2023 - Bloco 7 do conjunto Beira Mar, em Paulista, ruiu parcialmente e matou 14 pessoas
Ele afirma que a maioria dos prédios pode ter solução com um reforço, e que não deve haver demolição sem que laudos técnicos determinem que o prédio está definitivamente condenado.
Afirmo que é possível restabelecer a segurança estrutural, sem recorrer à demolição. Como se condena um prédio sem uma investigação aprofundada, sem um laudo técnico?
Carlos Wellington
Por que tantos prédios foram condenados?
O coordenador da Câmara de Engenharia Civil do Crea (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) de Pernambuco, Stênio Cuentro, afirma que, em regra, esses prédios foram erguidos com uso de técnica amadora, sem participação de engenheiros formados.
Houve a fundação direta malfeita, que foi disseminada naquela época. Em vez de colocar o tijolo na posição deitada, colocava em pé e deixava esse tijolo nu. E, em muitos casos, construíram uma fossa que jogava o esgoto na fundação do prédio, o que transforma o tijolo com coisa parecida com chocolate mole. Muitos desses prédios ruíram, e risco de desabamento iminente.
Stênio Cuentro
Na época, diz, a técnica se disseminou porque reduzia o custo de construção e, por tabela, resultava em apartamentos mais baratos. "As prefeituras não fiscalizavam as obras, davam o alvará e emitiam o documento de 'Habite-se' dizendo que aquele imóvel tinha condição."
A técnica não foi usada apenas em Pernambuco, mas encontrou na geografia do Grande Recife um problema que fez tantos prédios ruírem. Repleto de mangues e rios, o solo da região foi sendo aterrado e usado de forma desordenada em áreas que pediam mais cuidados na técnica de construção.
Em alguns locais, o lençol freático é muito alto, e no inverno ele molha as fundações do prédio. O que acontecia é que, no verão, com o lençol baixo e a terra mais seca, o construtor escavava e fazia a fundação do prédio. Quando chegava o inverno, essa água subia, mas a água não tinha mais para onde ir e se acumulava nessa fundação. Isso foi minando as estruturas.
Stênio Cuentro
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