Topo

Democracia e Diplomacia

O Itamaraty precisa voltar para o século 21

4.mai.2020 - O cancheler basileiro, Ernesto Araujo, e o presidente Jair Bolsonaro - Ueslei Marcelino/Reuters
4.mai.2020 - O cancheler basileiro, Ernesto Araujo, e o presidente Jair Bolsonaro Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

Colunista do UOL

03/12/2020 04h00

Por Karla Gobo*

O Ministério das Relações Exteriores é, juntamente com o Exército, nossa burocracia mais antiga. Embora seu processo de recrutamento tenha mudado ao longo do tempo, sempre procurou recrutar a "elite da elite", como o embaixador Marcos Azambuja escreveu na revista Piauí.

Na arquitetura e na organização dos seus espaços, no Rio de Janeiro e em Brasília, elementos como tradição, valorização da nacionalidade e apego às artes estão por toda a parte. Em Brasília, é particularmente curioso porque difere absolutamente dos monotemáticos prédios da Esplanada dos Ministérios.

A montagem e a decoração da nova casa da diplomacia brasileira não foram realizadas por um design de interiores, um decorador ou arquiteto, mas por alguém da "Casa", o embaixador Wladimir do Amaral Murtinho. A edificação não é obra apenas da imaginação de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, ela teve também participação dos profissionais da instituição, especialmente Murtinho e Olavo Redig de Campos.

Durante boa parte de sua história era comum, nas análises sobre esse espaço, a ideia de que seria insulado do restante do aparelho de Estado. Embora seja um ministério civil, os diplomatas veem certa semelhança com o Ministério da Defesa. Num levantameto aplicado em 2015, dentre 218 respondentes, 139 viam similaridades entre estes dois espaços; apenas 22 apontavam afinidades entre o Itamaraty e demais espaços civis (Saúde, Educação e Esportes).

É possível que a associação entre o ambiente diplomático e militar se dê pela forma de sua organização, centrada na tríade: hierarquia, disciplina e meritocracia. Esse modelo, sobretudo após a criação do Instituto Rio Branco, em 1945, definia a ocupação de cargos e embaixadas.

E, mesmo não sendo obrigatório um diplomata de carreira vir a ser também o Ministro das Relações Exteriores, a colocação no concurso de admissão, no curso de formação para os aprovados na carreira e a ocupação de embaixadas no exterior eram aspectos importantes na escolha de um diplomata para liderar a chancelaria. Os exemplos são inúmeros.

Até mesmo antes da criação do Instituto Rio Branco temos Oswaldo Aranha, embaixador em Washington, que volta para o Brasil para ocupar a chancelaria no Estado Novo de Getúlio Vargas. Mario Gibson Barbosa e Ramiro Saraiva Guerreiro, ambos ministros durante os anos Médici (1969-74) e Figueiredo (1979-85), foram os primeiros lugares nos seus respectivos concursos de admissão, assim como Luiz Felipe Lampreia e Celso Amorim após a redemocratização. Antônio Patriota, primeiro chanceler de Dilma Rousseff, não foi primeiro lugar no concurso, mas foi o primeiro colocado no curso de formação para a carreira.

Tanto no levantamento como em entrevistas com diplomatas a concepção de que a política externa é uma política de Estado e não de governo e que as suas práticas deveriam sempre estar voltada para a defesa do interesse nacional é o discurso praticamente hegemônico.

Mesmo durante os anos do regime ditatorial militar (1964-1985), período pelo qual o atual presidente Jair Bolsonaro nutre especial afeto, o Itamaraty não se furtou a defender tanto a sua burocracia quanto o interesse nacional no plano internacional. E, ao contrário do que se tem até o momento, o interesse nacional não se confundia com o interesse dos EUA ou do morador da Casa Branca daquele momento. Não raros foram os embates com os norte-americanos nesse período.

O estabelecimento das 200 milhas de mar territorial, a negativa em assinar o tratado de não proliferação de armar nucleares e o acordo nuclear com a Alemanha Ocidental são apenas alguns dos vários episódios em que o Brasil se colocou de forma contrária às expectativas e interesses dos Estados Unidos.

Bem, isso é parte do que eu explicava nas aulas introdutórias do curso de política externa brasileira. Entretanto, a partir de 2019 tive que inserir outra informação importante nessa introdução: "isso tudo é válido até o final de 2018, em 2019 muitas coisas mudaram".

A princípio duvidei que um presidente que nem sequer acreditava em partidos e se negava a formar uma coalizão para governar tivesse condições de abalar as estruturas do MRE. Entretanto, embora o atual ministro procure enfatizar um suposto retorno às tradições, o que se percebe é que a instituição está em movimento contrário ao que se praticou durante quase dois séculos de existência.

Quanto à política externa, é possível encontrar alguma correspondência com políticas anteriores de alinhamento ideológico com os Estados Unidos que implicaram relações mais verticalizadas e submissas com Washington.

Na história do Brasil do século 20, esses momentos foram curiosamente mais fortes em períodos de rupturas ou transições políticas. O retorno para a democracia no governo Dutra (1946-1950), o primeiro governo militar de Castelo Branco (1964-1967) e, novamente, no reestabelecimento democrático do governo Collor (1990-1992), são exemplos desse tipo de alinhamento.

Dado o tamanho e relevância dos EUA para as nossas relações, é compreensível que, nesses momentos de fraturas e restaurações, os governos recém-empossados procurassem o amparo e a segurança do nosso principal parceiro. Contudo, em nenhum momento na história do país optou-se por este modelo fora desses períodos.

É possível ainda dizer que o atual governo foi além na sua política de alinhamento ideológico com os EUA, ele criou o alinhamento ideológico personalizado ao estendê-lo não ao país, mas ao seu presidente, Donald Trump.

É preciso relembrar que a política de alinhamento ideológico nunca significou abrir mão do interesse nacional. Quando não correspondeu aos nossos interesses, não tivemos dúvidas em abandoná-la prol de relações mais pragmáticas.

O Itamaraty não apenas criou essa relação de alinhamento pessoalizado, como submeteu nossos interesses econômicos aos interesses de outro país, procurando beneficiar o presidente da República americano, dando-lhe vitórias diplomáticas no período.

A retirada dos impostos para o etanol norte-americano, enquanto os produtores brasileiros estão com estoques do produto e o apoio à candidatura à direção do Banco Interamericano de Desenvolvimento para o candidato do presidente Donald Trump, Mauricio Claver-Carone, são dois exemplos da unilateralidade dessa relação.

A escolha de um ministro que estava longe de corresponder às qualificações de seus antecessores no que diz respeito ao mérito e à hierarquia é outro aspecto curioso desta gestão. E, dada uma possível dificuldade inicial em lidar com o restante dessa burocracia, avalia flexibilizar a ocupação das chefias das subsecretarias com pessoas de fora da carreira.

O objetivo com essa medida é claro: conseguir impor obediência e vassalagem aos diplomatas que estavam em condições de ocupar esses cargos e evitar casos explícitos de indisciplina.

A diplomacia brasileira é reconhecida, dentro e fora do Brasil, como uma das mais preparadas do mundo. No entanto, apesar das pesquisas apontarem Joe Biden como possível vencedor das eleições, apenas no dia 8 de novembro, quando já estava confirmada a vitória do democrata, o chanceler brasileiro pediu relatórios ao corpo técnico de como o futuro governo norte-americano poderá influenciar nossa política externa. Isso parece mostrar a falta de profissionalismo e preparo do chanceler, que inclusive aconselhou o presidente a não reconhecer a vitória do democrata no pleito.

Em resumo, digno de um amadorismo monumental, em nome da fé em Trump, a diplomacia brasileira estava despreparada para o triunfo de Biden. Só depois se passou a pensar nas consequências dos fatos ocorridos. Era de se esperar, dado o histórico qualificado dessa burocracia, que este trabalho tivesse sido realizado durante a campanha eleitoral norte-americana, inclusive para evitar as desastradas ações e posicionamentos do governo brasileiro.

Considerando os elementos expostos acima e a conjuntura que aponta para a possibilidade de enfraquecimento dos políticos de extrema direita, populistas e anti-iluministas, é preciso começar a pensar no retorno do Itamaraty e da política externa brasileira para reais desafios do século 21 como o combate a desigualdades, a cooperação para o progresso dos povos e a prevalência dos direitos humanos.

*Karla Gobo é professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing, pesquisadora do Laboratório Cidades Criativas e utora do artigo: "Da Exclusão à Inclusão Consentida: negros e mulheres na diplomacia brasileira"