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Moderação 'pra inglês ver': Carlos França à frente do Itamaraty

O ministro das Relações Exteriores, Carlos França, e o presidente Jair Bolsonaro - Alan Santos/PR
O ministro das Relações Exteriores, Carlos França, e o presidente Jair Bolsonaro Imagem: Alan Santos/PR

Colunista do UOL

29/12/2021 04h00

Por Gabriel Kanaan e Rejane Hoeveler *

Quando Carlos Alberto Franco França foi convocado, em março de 2021, para assumir a direção do Itamaraty e apagar o incêndio gerado pela ofensiva "antiglobalista" e negacionista de Ernesto Araújo, foi apresentado como "técnico" e "pragmático": alguém que poderia salvar a condução da política externa da "ala ideológica" do governo Bolsonaro.

Como Araújo, França era um desconhecido antes de assumir o cargo, mas no discurso de posse, ao contrário do antecessor, fez uma fala, de fato, mais moderada. Como levantou o jornal O Globo, França não chamava Maduro de "narcoditador" e tinha até boas relações com o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming.

Entretanto, como ocorreu com outros "técnicos" convocados por Bolsonaro, a expectativa de pragmatismo rapidamente se esfacelou. Revivendo recentes casos como o de Marcelo Queiroga na Saúde e de Joaquim Leite no Meio Ambiente, a indicação gerou a falsa ilusão de que poderia haver modificações em posturas brasileiras condenadas nacional e internacionalmente. Sua participação nas manifestações do 7 de setembro, em que o presidente atacou a harmonia entre os poderes ao ameaçar não cumprir decisões do STF, e a "arminha" que apontou para manifestantes em Nova York indicam uma postura nada técnica.

Sinais nesse sentido já se acumulavam no dia a dia da chancelaria. França havia demonstrado seguir o mesmo programa defendido por Araújo, por exemplo quando se mostrou contrário à quebra de patentes das vacinas mesmo após o governo Biden ter declarado seu apoio à medida, indicando uma continuidade, neste ponto, do alinhamento de seu antecessor especificamente ao trumpismo. Em outro episódio, ocorrido pouco mais de um mês depois de sua posse, a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), instituição de pesquisa e reflexões do Itamaraty, lançava livro do olavista Evandro Pontes em defesa do antiglobalismo e do monarquismo. Quando questionado, o Itamaraty disse que "a obra foi escolhida por critérios estritamente técnicos".

Para os anais da catastrófica história diplomática de Bolsonaro, o novo ministro teve de ser lembrado pelo governo português do bicentenário da Independência. Bandeiras do Brasil colônia e do império escravista, aliás, seguem adornando cerimônias no Itamaraty, como na recente formatura da turma José Jobim de diplomatas. A turma, que desafiou o governo ao homenagear José Jobim, diplomata assassinado pela ditadura militar, foi respondida por uma ode de Carlos França, em sua fala na cerimônia, aos militares e à monarquia, quando homenageou a banda dos fuzileiros navais pela execução do hino nacional e recordou como eles fizeram a escolta de Dom João VI ao Brasil.

A despeito de tensões com a chamada "ala ideológica", o Itamaraty também opera de modo a protegê-la, por exemplo quando omitiu da CPI da Covid a reunião de Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro com ministros do governo israelense para discutir a compra do software Pegasus, desenvolvido para monitorar ativistas.

Tensões, sem dúvida, existem. A substituição de Araújo por França - responsável pelo cerimonial do Itamaraty nos governos FHC, Dilma, Temer e Bolsonaro e, portanto, com boa circulação no meio político - foi apontada como parte do movimento de Bolsonaro de aproximação ao centrão que criou atritos com o núcleo mais olavista do governo. Tais tensões, no entanto, aparentemente se dão mais em relação à forma de conduzir a política externa do que em relação ao conteúdo.

Em maio de 2021, por exemplo, logo após a posse de França, Filipe Martins, assessor para assuntos internacionais de Bolsonaro e expoente da ala lunático-olavista, pela primeira vez não acompanhou Bolsonaro em uma viagem ao exterior (Equador). França estaria pressionando o presidente a rebaixar Martins para a Apex, o que ainda não ocorreu.

Problemas com o núcleo olavista teriam se dado também em julho de 2021, quando o comando da Funag foi tirado de Roberto Goidanich, indicado por Araújo, e passado a Márcia Loureiro, antes cônsul em Los Angeles. O perfil da Funag de fato reduziu sua atividade no YouTube, mas na inauguração do novo ciclo de conferências da fundação, a diplomata frisou que dava continuidade ao ciclo anterior, organizado por Goidanich em parceria com o jornal Brasil sem medo, idealizado por Olavo de Carvalho, e com a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), entidade empresarial bolsonarista que se notabilizou por atacar a decisão do STF de desmonetizar sites olavistas que divulgavam fake news. Entre eles estavam as redes sociais de Allan dos Santos, jornalista que teve prisão decretada nesta investigação do STF e que no passado recente foi um dos convidados de destaque da Funag.

A primeira atividade do II Ciclo de Conferências sobre a Política Externa Brasileira da Funag sob nova direção, uma palestra de Carlos França, é simbólica de tais alterações na forma e continuidades no conteúdo. O evento contou com a participação do presidente da citada Fiemg, Flávio Roscoe, cujo currículo inclui presença na comitiva que visitou Trump em março de 2020, tendo retornado ao Brasil com covid.

Embora França tenha defendido parcerias com a China e valorizado políticas de responsabilidade social e ambiental exigidas no comércio internacional contemporâneo, logo na primeira pergunta da plateia, revelou-se bolsonarista fiel. O representante da Fiemg afirmou que a pandemia havia mostrado a falência das cadeias globais de valor. França concordou, lamentando a dependência global aos insumos farmacêuticos ativos (IFAs) chineses. Como alternativa, defendeu as parcerias com os EUA (Europharma e Pfizer) e Europa (Fiocruz e Astrazeneca), não citando a parceria do Instituto Butantan com a chinesa Sinovac, responsável por 30% das doses aplicadas no país.

Sem citar a China, afirmou que a parceria da Fiocruz seria melhor que a do Butantan, pois prevê transferência de tecnologia. Dessa forma, o novo chanceler continua a ofensiva de fake news contra o maior parceiro comercial do Brasil, pois, como se sabe, o contrato com a Sinovac também prevê a transferência. Em certo tom de cinismo polido, o chanceler criticou os meios de comunicação, observando que a crise de falta de respiradores e oxigênio teria sido "muito bem divulgada pela imprensa". E quando perguntado sobre questões ambientais, atacou as preocupações internacionais em torno do aumento de 70% nos desmatamentos na Amazônia nos quase três anos de governo Bolsonaro (em comparação aos três anos anteriores) tergiversando que, "ao contrário do que dizem lá fora, o Brasil é solução, e não problema".

Nos preparativos para a COP26, França insistiu nesse discurso, defendendo que a meta assinada pelo Brasil no Acordo de Paris, em 2015 - reduzir a emissão de gases em 43% até 2030 em relação às 2,1 bilhões de toneladas emitidas em 2005 - "supera, em ambição, os compromissos da maioria dos países desenvolvidos, ainda que nossa responsabilidade histórica seja menor". Com isso, tenta mascarar que, em 2020, quando as metas de 2015 se mostraram insuficientes e foi exigido de todos os países uma redução maior, o governo Bolsonaro fez o contrário: manteve a meta de 43%, mas o fez após um reajuste na contagem das emissões em 2005 ir das 2,1 bilhões de toneladas para 2,8 - ou seja, se o Brasil havia se comprometido a emitir 1,2 bilhões de toneladas em 2030, agora poderá emitir 1,6. Durante a COP26, o Ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite aumentou a meta para 50% - comprometendo-se a emitir 1,4 em 2030, índice ainda superior às 1,2 prometidas em 2015.

França tem que tirar água de pedra para esconder como o seu governo está aproveitando a pandemia para "passar a boiada", explodindo os índices de desmatamento, tema que França nem citou em seu texto sobre a COP26. Como explicar os dados que apontam como o Brasil, indo na contramão do mundo, aumentou 9,5% a emissão de gases poluentes em 2020, enquanto a média global caiu 7%. A omissão de França é a cara do governo que, para chegar na COP26 com alguma dignidade, lançou o Plano Nacional de Crescimento Verde na semana anterior ao evento, mas em sua cerimônia de lançamento viu o ministro da Economia dizendo que o petróleo brasileiro deve ser queimado o mais rápido possível, antes que o mundo decida parar de usar combustíveis fósseis.

A farsa dos discursos da comitiva de Bolsonaro na COP26 - aos quais pode-se acrescentar a defesa da "mineração sustentável" - transformou-se em tragédia poucas semanas depois com o lançamento pelo governo de um pacote que abre ainda mais a Amazônia à mineração.

Quando apontou a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos, França novamente deu continuidade à política de Araújo, mobilizando a mesma caricatura de nacionalismo dos farsescos discursos de Bolsonaro contra os interesses estrangeiros, por exemplo, na Amazônia - ele, que prometeu a Clinton parte da pilhagem da floresta. França também seguiu essa linha ao condicionar o cumprimento das metas do Brasil ao apoio internacional dos países desenvolvidos. Leite, antes da COP, decidiu adiar a tramitação da lei para criação de mercado de carbonos no Brasil para depois do evento, talvez buscando negociar um aumento menor da redução de gases poluentes.

Mas, no fim das contas, o chanceler comemorou a aprovação do regulamento do mercado de carbono, mecanismo que possibilita às indústrias dos países ricos continuar emitindo gases poluentes, desde que comprem os créditos de carbono acumulados pelos países com indústrias menos desenvolvidas e, portanto, com menores emissões. O governo Bolsonaro está alinhado a esta estratégia dos Estados Unidos e Europa em terceirizar parte dos impactos ambientais para os países periféricos através da mercantilização da natureza. O Programa de Concessões de Parques lançado pelo governo Bolsonaro em 2020 é outro exemplo do projeto em curso de privatização e desnacionalização das nossas florestas.

Direto da COP26, Carlos França viajou, agora com a presença de Bolsonaro, ao Oriente Médio. A visita aos monarcas de Dubai, Bahrein e Catar, onde Guedes foi implorar por petrodólares para amenizar a crise econômica que causou, simboliza a síntese entre autoritarismo e neoliberalismo do governo Bolsonaro. De lá, Bolsonaro manteve sua base mobilizada disparando fake news em suas redes sociais, como "a Amazônia não pega fogo porque é úmida", e articulando uma motociata.

Mesmo assim, essa visita aos países árabes, junto com o encontro de Carlos França com representantes da Liga Árabe durante os conflitos entre Israel e a Palestina em maio de 2021, foram vistos como sinal de moderação da gestão de França na relação com o mundo árabe, com base no apontamento de que Araújo não teria tido tal interlocução. No entanto, em 2019, Bolsonaro já havia visitado o Catar e o Bahrein, e Araújo se reunido com representantes da Liga Árabe. E mesmo tendo supostamente aumentado os canais de diálogo com os árabes, França referiu-se aos bombardeios israelenses que assassinaram 66 crianças palestinas como "relatos de danos a vidas inocentes", pedindo que Israel se contenha e respeite as leis "enquanto exercem seu direito inalienável de autodefesa". Continuou repudiando o "lançamento indiscriminado de foguetes a partir da Faixa de Gaza, que têm como alvo a população civil" (e que não são apenas "relatos"), manifestando "o apoio ao direito israelense de defender-se e de proteger sua população de tais ataques".

Se fosse Araújo, teríamos ouvido impropérios mais agressivos contra a agenda ambiental dos "globalistas" e contra os "terroristas islâmicos". No entanto, a troca de cadeiras, embora tenha permitido mudanças de tom, não significou mudanças de posições, que seguem desastrosas. O Brasil permanece na condição pária internacional, como sugeriu a recusa do governo francês em se reunir com o chanceler brasileiro em Paris, enquanto recebeu o maior adversário eleitoral de Bolsonaro.

A estratégia de Bolsonaro é de mobilização permanente. Pessoas que substituem figuras chamuscadas acabam assumindo a função de bombeiro - também frequentemente desempenhada por militares. Quando, por exemplo, Bolsonaro acusou a China de ter criado o coronavírus para fazer uma guerra química, França, em audiência no Senado no dia seguinte, disse que "não há, hoje, nenhum problema político que nessa questão permeie ou atrapalhe a nossa produção de vacinas aqui". As declarações dos ministros de Estado, e neste caso do ministro responsável por representar o Brasil no cenário internacional, ficam ao sabor dos humores do presidente e seus consortes. O Itamaraty sofre as consequências, perdendo relevância e credibilidade.

É nesse jogo de criar contradições internas que o governo Bolsonaro encontrou seu modus operandi perfeito: simulando a própria oposição, o presidente e seu clã logram situação na qual os próprios quadros do governo ganham todos os holofotes, deixando as oposições reais em estado de apatia, muitas vezes cultivando uma vã esperança de moderação que jamais se concretiza.

A ideologia totalitária de Bolsonaro captura e opera um transformismo radical mesmo daqueles que nunca estiveram perto de esposar as ideias de Olavo de Carvalho ou Steve Bannon: uma vez dentro do governo, não é possível fugir às linhas de tais cartilhas. Existe uma contradição imanente entre prestar contas a Bolsonaro e seguir uma agenda moderada.

O caso do ex-ministro da Saúde Nelson Teich, demitido em menos de um mês, é revelador de como não é possível autonomia em relação ao negacionismo. Em sua primeira participação em uma reunião ministerial, Teich foi "centralizado" por Damares, que o alertou: "quero te lembrar ministro, que tá chegando agora, que este governo é um governo pró-vida e pró-família (?) valores estão lá no seu ministério também (?) o seu ministério tá lotado de feminista que tem uma pauta única que é a liberação de aborto". No governo Bolsonaro, não há pragmatismo sem valores.

França, até agora, não compareceu aos seminários em defesa da vida nos quais Araújo marcava presença, mas, como assinalado, diminui a importância da China, menospreza preocupações em torno da Amazônia, ataca a imprensa, dá apoio a investidas golpistas e incorpora simbologias macabras do bolsonarismo.

Mudam-se alguns operadores, nuances eventualmente se identificam, mas o contexto geral permanece. O presidente tem uma agenda de destruição e descarta com facilidade auxiliares. Expectativas de moderação invariavelmente se frustram. Na política externa, isso não tem sido diferente. Sem saída possível nesse governo, resta à oposição construir, como propõe essa coluna, uma alternativa real, em conjunto com organizações e movimentos sociais que lutam pela democracia e autonomia do Brasil, que impulsione o renascimento da nossa política externa.

*Rejane Hoeveler é professora substituta na Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). rejanecarol@gmail.com; Gabriel Kanaan é mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutorando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). glkanaan@gmail.com