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Diálogos Públicos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Existe antídoto para os desvios no MEC

Colunista do UOL

27/06/2022 15h06

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Salomão Ximenes*

"Acesso Pago" é o nome de batismo da operação da Polícia Federal (PF) que levou à prisão do ex-ministro e pastor Milton Ribeiro, ex-assessores e outros envolvidos no escândalo de venda de senhas na fila de projetos que aguardam financiamento no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

O nome fantasia remete a uma longa discussão no campo das políticas públicas de financiamento à educação básica brasileira: a fronteira entre vinculação legal e constitucional e a discricionariedade político-administrativa na gestão orçamentária de projetos de políticas públicas educacionais.

O que vemos estarrecidos a cada revelação da operação "Acesso Pago", afinal, é a versão criminosa do abuso de discricionariedade na alocação de recursos federais para Municípios e Estados que formulam demandas de apoio financeiro - em geral necessárias e legítimas - diretamente ao MEC/FNDE, uma rotina de larga tradição na dinâmica federativa brasileira e que alimenta o submundo de contatos e agendas em Brasília.

Sejamos francos: não foram os pastores de hoje, com suas prendas e bíblias encartadas com foto de ministro, promessas de construção de templos e "rachadinhas" de todo tipo que iniciaram a prática da romaria aos corredores da alta administração educacional do país.

Pastinhas de projetos tal pires nas mãos, prefeitos, secretários e intermediários lobistas são os romeiros da federação a denunciar uma ausência de efetividade e eficiência dos critérios alocativos das prioridades orçamentárias na educação brasileira, sobretudo de alocação de recursos para investimento em obras e equipamentos. Resumindo, o ecossistema todo favorece o mal feito.

Vale ressaltar que em razão de aperfeiçoamentos institucionais progressivos, a imensa maioria dos recursos destinados à educação básica no Brasil passa longe dessa dinâmica deturpada.

Desde a década de 1990, a criação do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) e, sobretudo, a transformação deste em Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) em 2006 e a aprovação, neste período, de leis que vinculam jurídica e tecnicamente os critérios de repasse dos programas federais de apoio suplementar à alimentação escolar, à gestão de recursos financeiros diretamente pelas escolas e à manutenção do transporte escolar, garantem estabilidade ao arranjo básico de financiamento da educação básica no Brasil, suficiente para sobreviver, até aqui, à lógica destrutiva do governo Bolsonaro. Não é pouco, convenhamos.

Com o principal mecanismo, o FUNDEB ampliado e tornado permanente em 2020 (Emenda n. 108), a própria Constituição Federal vincula repasses a critérios objetivos de matrículas e disponibilidade orçamentária, assegurando ainda que no mínimo 70% desses recursos cheguem no ponto em que fazem maior diferença e em que são menos sujeitos a desvios: na remuneração de quem trabalha na educação.

No Fundeb, a União destina uma complementação que alcançará 23% (em 2026) do aportado ao Fundo por todos os Estados, o Distrito Federal e aos Municípios, valor que deve ser alocado majoritariamente nos entes com menor capacidade de arrecadação relativa ao número de matrículas que assegura na educação básica. No Fundeb 2021, após o ajuste anual, foram R$ 19,8 bilhões nesta complementação federal, repassada diretamente às contas locais; na estimativa atual, em 2022 serão R$ 32,3 bilhões, sem pastores ou romeiros no caminho. A mesma objetividade pode ser encontrada nos demais programas definidos em lei (transporte, alimentação e repasse direto às escolas), já comentados.

A brecha

O mesmo não se pode dizer da tentativa de racionalizar e dar transparência ao restante dos recursos alocados pelo FNDE. Este órgão, uma autarquia vinculada ao MEC voltada à execução direta de recursos educacionais, teve como dotação orçamentária em 2021 cerca de R$ 38,6 bilhões (29,8% do previsto para o MEC), sendo 14,3% (R$ 5,5 bilhões) dessa dotação classificada como despesa discricionária (segundo o Portal da Transparência do Governo Federal).

Em 2007 um decreto presidencial criou o Plano de Ações Articuladas (PAR) com o objetivo de dar transparência, definir critérios e organizar o fluxo de demandas de estados e municípios junto ao MEC. Em 2012, o PAR foi regulado em Lei e definido como único meio de acesso ao "apoio técnico ou financeiro prestado em caráter suplementar e voluntário pela União às redes públicas de educação básica dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios".

Segundo o MEC: "A elaboração do plano é feita em três etapas: Etapa Preparatória e Diagnóstico da situação educacional, Etapa de Planejamento e análise técnica. Concluída a etapa do diagnóstico da situação educacional, o ente, por meio do SIMEC, elabora o seu Plano de Ações Articuladas e o apresenta ao FNDE e ao MEC.".

A Lei, no entanto, não define critérios de priorização das demandas, relegando estes aos regulamentos a serem emanados do próprio FNDE. Atualmente, cabe à Resolução nº 4 de 2020, do Conselho Deliberativo do FNDE, regular operacionalmente esse fluxo, definindo critérios. No documento, no entanto, o que se vê é uma tentativa de ranqueamento de prioridades com base em indicadores e em critérios técnicos ser relativizada pela "adoção de critérios adicionais aos especificados" mediante justificativa "em documento técnico" (§ 2º, artigo 3°).

"Critérios adicionais", assim em aberto, é o eufemismo para a discricionariedade política na definição das prioridades alocativas. Como o direito administrativo contemporâneo não mais comporta a ideia de discricionariedade absoluta, no entanto, esta se reveste de "documentos técnicos" contra a técnica pré-estabelecida.

Está aí, portanto, a senha para a discricionariedade de fato e o incentivo ao assédio institucional que justifica o injustificável, dinâmica recentemente agravada com a entrada em peso de emendas parlamentares direcionadas à base parlamentar bolsonarista na conta do PAR, via o que se convencionou chamar "orçamento secreto" ou emendas de relator (classificação RP-9), cujo padrinho parlamentar, segundo constatações jornalísticas, é informalmente apontado pela cúpula do Legislativo.

Em 2021, segundo o Portal da Transparência, via FNDE foram executados R$ 820 milhões em emendas parlamentares, sendo R$ 96,6 milhões em emendas individuais (RP-6), R$ 200,5 milhões em emendas de bancada (RP-7) e R$ 522,9 milhões em emendas de relator (RP-9).

A totalidade das RP-9 foi executada em uma única ação: Infraestrutura da Educação Básica, que também é contemplada nas emendas individuais e de bancada, mas nestes casos se somando ao direcionamento a outras ações, como a compra de veículos na ação "Caminho da Escola". As emendas parlamentares, impositivas, compõe se não a maioria uma parcela significativa do financiamento dessas ações de apoio a estados e municípios, que assim passam a operar sob lógicas meramente político-eleitorais e coalizões parlamentares.

No fim, cabe ao FNDE passar o verniz de formalidade e executar as ações, enquanto a um Comitê Estratégico de 10 (dez) membros atribui-se o poder de "definir, monitorar e revisar as ações, programas e atividades que serão objeto de apoio técnico ou financeiro da União" (artigo 3º da Lei n. 12.695, de 2012).

De tão "estratégico" na gestão da fila de espera e das demandas parlamentares, tal Comitê é hoje composto por 8 (oito) representantes do governo (secretarias do MEC, INEP, CAPES e o próprio FNDE), 1 (um) do Conselho Nacional de Secretários de Estado da Educação - Consed e 1 (um) da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação - Undime.

Suficiência, previsibilidade e controle social: o antídoto

A história dessa lacuna de regulação, intencionalmente deixada ao gestor de ocasião e hoje conjunturalmente imersa na lama suja de pastores-lobistas, orçamentos secretos e mercadores de influência política, confunde-se com a história de omissão na regulação do Custo-Aluno Qualidade (CAQ) no Brasil.

Resultado de décadas de pesquisas desenvolvidas pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em articulação com estudiosos e estudiosas do financiamento da educação, o CAQ é uma metodologia que permite estimar os valores necessários à garantia de uma educação de qualidade no Brasil, considerando diferenças de etapas e modalidades de ensino, assim como estágios de implementação.

Para chegar aos valores, o CAQ extrai dos referencias normativos do direito à educação os insumos indispensáveis ao bom funcionamento das escolas em todo o país, simulando custos a partir desses insumos, de forma transparente e adaptável aos diferentes contextos.

A resistência à sua incorporação na política educacional vem de duas frentes.

Primeiro, porque o CAQ deixa transparecer o crônico subfinanciamento da maioria das redes públicas de ensino e também o caráter desigual e discriminatório da distribuição de verbas. Este caráter, mesmo reduzido com o Fundeb, ainda persiste, relegando crianças e adolescentes de municípios e estados mais pobres a condições escolares abaixo do mínimo constitucional e legalmente aceitável.

Segundo, porque o CAQ dá referencias objetivas sobre as condições de qualidade da oferta, ao vincular insumos necessários à disponibilidade de recursos e ao objetivar o trabalho de controle social.

Entre 2010 e 2014, enquanto eram revistos e regulados em lei os mecanismos distributivos do PAR, o MEC perdeu uma oportunidade de ouro de avançar na regulação do CAQ ao sentar sobre o Parecer n° 8/2010 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), que trata dos padrões mínimos de qualidade de ensino para a educação básica pública conforme determina o IX do artigo 4º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB).

Após quase quatro anos aguardando homologação pelo Ministro da Educação, a proposta de resolução que regulava o CAQ foi devolvida ao CNE para reapreciação, sendo ao final engavetada, já no contexto de desmontes das políticas de financiamento do pós-2016.

Apesar de boicotes e resistências, o CAQ avançou em outras frentes. Em termos normativos foi incorporado às estratégias do Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado na Lei n° 13.005/2014 (que incorporou o CAQ e uma estágio imediato de implementação, o CAQ Inicial - CAQi) e, posteriormente, na Emenda Constitucional n. 108/2020, que aprovou o Fundeb permanente e reiterou o dever da União de assegurar o padrão mínimo de qualidade tendo como referência o CAQ.

Atualmente, a necessária regulamentação operacional do CAQ está em discussão no Projeto de Lei Complementar (PLP) 235/2019, já aprovado no Senado Federal e que institui o Sistema Nacional de Educação (SNE). Como tem alertado a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, este projeto não apresenta um desenho operacional seguro para o CAQ.

O CAQ é um método de cálculo e estimativa normativamente orientado à realização do direito à educação básica de qualidade e sem discriminação que precisa se transformar em técnica de execução de política pública.

Para isso, será necessária uma tripla acoplagem jurídico-institucional do CAQ às políticas educacionais.

Primeiro, será necessário normatizar os critérios de cálculo conforme a estimativa de insumos e contextos no âmbito de um Sistema Nacional de Educação (SNE) democrático, com o aprimoramento desse desenho normativo no PLP 235/2019. Uma experiência de grande relevância nesse sentido é o SimCAQ, um potente simulador de custos educacionais construído sobre os critérios normativos do CAQ, por pesquisadores da UFPR e da UFG, com o apoio do próprio MEC.

A segunda e essencial acoplagem deve ser ao Fundeb, passando o CAQ a dirigir uma complementação adicional vinculante da União, acima dos mínimos definidos na Emenda n. 108, direcionada ao cumprimento do financiamento básico necessário em todos os entes federativos que não possam alcança-lo com os recursos próprios e as complementações básicas do Fundeb. Esta complementação poderia servir ao aprimoramento do PAR, a ele se integrando em termos funcionais e assim endereçando os pleitos locais e as demandas parlamentares aos canais de regulação devidos, previamente estipulados no SNE.

Por fim, o CAQ deve estar acoplado ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), de forma a rastrear o cumprimento dos compromissos e planos de ampliação e equalização do acesso, com qualificação da infraestrutura das escolas e dos programas de apoio aos estudantes. Vincular e dar rastreabilidade aos recursos é o antídoto contra futuros escândalos.

Deixar escolas públicas em condições de indigência não deveria compor o rol de decisões discricionárias, já que garantir o padrão mínimo de qualidade é um mandamento básico da Constituição, ainda mais quando se sabe que a indigência programada é a moeda de troca na venda do acesso às autoridades e ao orçamento.

Na perspectiva da literatura acadêmica estabelecida sobre o assunto, o financiamento da educação exige cumprir três requisitos de simples entendimento e justificação: suficiência de recursos, estabilidade e previsibilidade orçamentárias e controle social efetivo por parte dos usuários e das instâncias de controle. O CAQ permite avançar nas três. Seguir omitindo sua regulamentação é apostar alto na apreciação do vale senha na fila do MEC.

* Salomão Ximenes é professor de Direito e Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), doutor em Direito do Estado (USP), autor de "Direito à Qualidade na Educação Básica: teoria e crítica" (Quartier Latin) e membro da Rede Escola Pública e Universidade (Repu).

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