O que há por trás do assalto do governo Bolsonaro à ciência
O governo federal está em guerra com os fatos. E, na semana que se encerra, fez algumas de suas maiores investidas contra eles. O presidente Jair Bolsonaro e seus ministros estão nas trincheiras contra todos os tipos de fatos: científicos, jornalísticos, jurídicos. O motivo para isso é simples. Os fatos não são bons para esse governo.
A batalha contra os números já começou perdida. O Ministério da Saúde — comandado por um interino com jeitão de definitivo, porque tem a qualificação mais apreciada pelo presidente que é não entender nada do assunto da pasta — obliterou dos boletins da covid-19 os óbitos e pacientes novos confirmados com atraso. Ou seja, passou a divulgar apenas casos confirmados no dia anterior, sem consolidar o acumulado de óbitos e pessoas infectadas. Com isso, os números passaram a refletir uma realidade edulcorada. Falsa, para ser mais claro.
Não dava para brigar com os fatos dos mortos, porque os dados estão disponíveis nos estados. A imprensa profissional, zelosa com os fatos, criou um consórcio de veículos para compilar as informações e passou a divulgá-los e confrontá-los com o que o ministério difundia. Veio o Supremo Tribunal Federal (STF) e determinou que o governo voltasse a informar os dados completos.
Como um comandante suicida que ficou sem munição, Bolsonaro, ainda disposto a provar que os números de pacientes de covid-19 estão "inflados", tratou de convocar os militantes para invadir hospitais de campanha e filmar o interior para provar que estão vazios. Só que, no caso, o presidente foi kamikaze com os outros. Pois, com essa sugestão, não é ele que se coloca em risco, e sim seus apoiadores e os pacientes e funcionários dos hospitais. Bolsonaro não se conforma com o fato de que o Brasil já é o país com o segundo maior número de mortos pela doença que ele chamou de "gripezinha" em pronunciamento em cadeia nacional, em março.
Quando a pandemia do novo coronavírus começou a produzir cenas de caos em outros países, como a Itália, Bolsonaro e alguns pseudocientistas aduladores minimizaram o perigo para o Brasil e disseram que 1) o vírus não se espalharia em um clima quente como o nosso; 2) teríamos "poucos" mortos, não mais do dois milhares, porque nossa população não tem tantos idosos quanto a italiana; e 3) a nova doença equiparava-se a uma gripe comum.
Não é preciso entrar nem na questão moral das afirmações acima, como o descaso com a população idosa, de maior risco. Com base em suas convicções — que não eram fatos, apenas palpites sem embasamento —, Bolsonaro se recusou a apoiar as medidas que vinham sendo recomendadas por especialistas do mundo todo e do Brasil (não apenas pela vilipendiada Organização Mundial de Saúde).
Resultado: os fatos provaram que ele estava errado nos três pontos: 1) O vírus se espalhou em nosso clima tropical, lotando hospitais e cemitérios até no Nordeste e no Norte do país; 2) a idade média dos mortos por covid-19 no Brasil é mais baixa do que em outros países e já temos mais de 41.000 óbitos e contando, sem considerar a subnotificação; 3) a nova doença tem letalidade mais alta e maior capacidade de transmissão que a H1N1 e outras síndromes respiratórias virais.
Atribui-se ao economista John Maynard Keynes a frase: "Quando os fatos mudam, eu mudo de ideia. E você?". Bolsonaro, não.
Bolsonaro recusou-se a escutar os especialistas, inclusive dois de seus ministros da Saúde com formação médica que acabaram expelidos do governo por insistir em seguir essa coisa incômoda chamada ciência, e viu os fatos provando que ele estava errado.
Sim, era necessário ter apoiado medidas de distanciamento social efetivas no começo da crise de saúde pública. Ao minar os esforços nesse sentido, Bolsonaro contribuiu para um isolamento social meia-boca em boa parte do país, que apenas estendeu a agonia de comércios fechados, pessoas sem emprego, famílias com renda reduzida, escolas fechadas.
Como Keynes, ele poderia ter caído na real e mudado de opinião. Mas seria esperar demais do capitão.
Para ele, se os fatos provam o contrário de suas convicções ou de seus desejos, que se mudem os fatos — ou que sejam empurrados para debaixo do tapete.
A Comunicação Social do governo passou, então, a selecionar manchetes jornalísticas incômodas, tachá-las de "narrativa" e confrontá-las com o que chama de "realidade": dados soltos, sem contexto, que omitem os fatos negativos. A tática que consiste em inverter a realidade, chamando os fatos jornalísticos de invenção, soma-se à já consolidada prática presidencial de incitar os apoiadores a atacar, ofender e intimidar profissionais de imprensa.
Mas não é só a ciência e a imprensa que incomodam o governo Bolsonaro. O Poder Judiciário também insiste em se ater aos fatos. Um deles é que o Executivo não pode fazer o que quer. Em uma democracia, com equilíbrio entre as instituições, o poder presidencial é limitado.
Bolsonaro, por exemplo, tentou impedir governadores e prefeitos de adotar medidas de isolamento social via decreto, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou a autonomia dos entes federativos para executar políticas sanitárias.
A Constituição está no caminho do presidente — ainda bem. Esta semana, ele tentou dar ao seu ministro da Educação, Abraham Weintraub, o poder de nomear reitores de universidades federais. Era mais uma tentativa de tomar de assalto a ciência, essa destruidora de crenças e convições. O Senado devolveu a Medida Provisória, por ser inconstitucional. Bolsonaro se viu obrigado a revogá-la.
O problema de governar com uma postura anticiência e em desacordo com os fatos é que se perde totalmente a credibilidade. Esta semana, o Ministério da Saúde se viu na ridícula posição de esclarecer que o feijão de R$ 1.000 que um pastor evangélico estava vendendo como se fosse a cura para a covid-19 não passava de "fake news". Não é só fake news, é charlatanismo, mesmo.
O Ministério da Saúde continua distribuindo e recomendando a prescrição de hidroxicloroquina, um remédio cuja eficácia no tratamento da covid-19 ainda não foi comprovada com evidências científicas. Ou seja, até o obscurantismo do governo Bolsonaro tem limite. Grão de feijão, não, aí já é demais.
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