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Diogo Schelp

Aversão ao lucro e outras 6 contradições do programa de Boulos

25 nov. 2020 - Guilherme Boulos (PSOL) em agenda de campanha - Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo
25 nov. 2020 - Guilherme Boulos (PSOL) em agenda de campanha Imagem: Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

26/11/2020 04h00

A virada é improvável, mas não impossível. Com o crescimento de Guilherme Boulos (PSOL) sobre os indecisos e o risco de alta abstenção de eleitores mais velhos no segundo turno, Bruno Covas (PSDB), o atual prefeito de São Paulo, não pode considerar sua permanência no cargo garantida. Diante da hipótese de que a maior cidade do país venha a ser administrada pelos próximos quatro anos pelo psolista, convém retomar seu plano de governo e algumas das promessas feitas ao longo da campanha.

Como ficou evidente na sabatina UOL/Folha desta quinta-feira (26), Boulos vem ajustando seu discurso, amenizando alguns pontos de seu programa ou dando novas interpretações a eles, com o intuito de passar uma imagem mais moderada.

Boulos tem a vantagem de não estar no governo e, mais do que isso, de nunca ter governado nada, o que elimina comparações práticas e lhe dá mais liberdade para elaborar um programa idealista, construído do zero a partir dos problemas reais da cidade e das deficiências da atual gestão tucana.

Uma das principais dúvidas, porém, é se esse plano de governo é factível, se pode ser implantado considerando-se as limitações financeiras e políticas. Em alguns pontos, até pode ser, sim, factível. Por exemplo, nas propostas para estimular empresas que prestam serviço para a prefeitura a serem mais inclusivas e garantirem mais diversidade nas contratações.

Mas o problema é anterior às propostas em si. As inconsistências no plano de governo de Boulos começam com a visão que o seu partido, o PSOL, tem do capitalismo e da lógica do mercado. Ou seja, da lógica que rege a sociedade em que, querendo ou não, vivemos.

E é por aí que começamos essa pequena lista, certamente incompleta, das 7 contradições do plano de governo de Guilherme Boulos para a prefeitura de São Paulo:

Aversão ao lucro

A palavra "lucro", seja no plural ou no singular, aparece cinco vezes no programa de governo que a campanha de Boulos registrou junto à Justiça Eleitoral. Em todas elas, o contexto é negativo. As "grandes empresas capitalistas" geram "lucros para poucos, exploram o trabalho de muitos e impactam o meio ambiente", afirma um dos trechos. "Hoje, os serviços públicos se tornaram objeto de benemerência ou lucro", afirma-se em outro momento.

"Empresa" e termos correlatos (como "empresariais") aparecem dezesseis vezes, das quais apenas metade de maneira positiva ou neutra (por exemplo, quando se propõe instituir a isenção temporária de impostos para microempresas atingidas pela pandemia).

De resto, predomina a demonização dos "interesses empresariais" e do "modelo" que os favorecem. Empreendedor bom é só aquele que vem antecedido de "micro" ou "pequeno" e se destina a garantir a subsistência do indivíduo e sua família.

Essa aversão ao lucro que permeia todo o documento é coerente com o partido pelo qual Boulos concorre à eleição na capital paulista. O PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), como afirmou seu presidente em entrevista recente, representa uma "esquerda renovada e anticapitalista".

Renovada porque aborda temas como direitos das minorias. E anticapitalista... bem, isso está no DNA do partido, nascido das entranhas do PT e classificado como "extrema esquerda" por estudo feito com base em entrevistas com mais de 519 cientistas políticos (o PSDB foi qualificado como "direita").

Como o PSOL administraria São Paulo, o coração econômico do Brasil, que representa nada menos que 10% do PIB nacional e cuja riqueza e dinamismo foram em grande parte construídos por gerações e mais gerações de paulistanos que, quem diria, buscavam o lucro? Vejamos nos próximos itens.

Volta atrás na previdência

Deixemos de lado a já muito criticada declaração de Boulos a respeito de seus planos de abrir concursos públicos para cobrir o déficit na previdência municipal. O candidato disse, posteriormente, que se expressou mal e que não acredita que "contratar mais gente soluciona o problema da previdência".

Esclarecido esse ponto, fato é que o programa de Boulos não apresenta saída para o déficit previdenciário municipal, que chega a 5,9 bilhões de reais por ano. Ao contrário: entre outros pontos, a programa prevê a revogação da lei que criou o Sampaprev, um regime previdenciário complementar para os funcionários que ganham mais que o teto do INSS e que querem manter a aposentaria integral — direito abolido por uma reforma previdenciária municipal aprovada em 2018.

O Sampaprev é um símbolo de tudo o que o PSOL abomina na tal reforma previdenciária, mas o fato é que ela foi um avanço, ainda que tímido, para conter o déficit no sistema. Ficaram de fora mudanças mais significativas, como o aumento da idade mínima para a aposentadoria dos atuais funcionários.

Mais funcionários

Mesmo com o esclarecimento de Boulos de que não considera que o aumento na folha de pagamento vai cobrir o déficit previdenciário, seu programa de governo e suas declarações em entrevistas e debates deixam antever que o inchaço da máquina pública está no seu horizonte. Em mais de uma ocasião, Boulos criticou a terceirização dos serviços públicos e as Parcerias Público-Privadas (PPPs).

Pode haver espaço para fazer contratações em setores essenciais como na educação, na saúde e em algumas áreas administrativas, mas de resto não há sentido econômico em criar vagas com estabilidade e todos os custos nela embutidos para funções que podem ser desempenhadas pela iniciativa privada de maneira mais flexível.

Existe, claro, um sentido político. Segundo a última pesquisa Datafolha, Boulos tem 74% dos votos dos servidores públicos. Trata-se de um nicho tradicional do PSOL.

Abaixo as creches conveniadas

Um dos itens do programa de governo de Boulos prevê "reverter, gradativamente, o processo de privatização, terceirização e conveniamento da educação". Nesse quesito se enquadrariam, obviamente, as mais de 2.000 creches que prestam o serviço de educação infantil em convênio com a prefeitura.

A campanha de Boulos teve de vir a público para negar que a frase sobre "conveniamento" contida no programa de governo se refere (também) à educação infantil. Mas o candidato tem dito que pretende revisar contratos e parcerias com organizações sociais — porém não de maneira "intempestiva", da noite para o dia. Essa postura, que contradiz o seu programa de governo, foi reforçada na sabatina UOL/Folha realizada nesta quinta-feira (26).

O documento com suas propostas não deixa margem para dúvidas de que o caminho para "zerar a fila das creches", uma das promessas do candidato, não passa pelo modelo dos convênios e sim pela prestação do serviço diretamente pela prefeitura. Mais um tema em que se vislumbra, portanto, o inchaço do funcionalismo e da máquina pública.

Renda básica

Boulos promete criar um programa de renda mínima paulistano, já que o auxílio emergencial, do governo federal, está chegando ao fim. O valor pode chegar a 400 reais para cerca de 1 milhão de beneficiários (menos de um terço dos que hoje recebem o auxílio federal).

O candidato vê na distribuição de dinheiro uma forma de aquecer o comércio e o setor de serviços locais, em especial nas regiões periféricas, além de suprir as necessidades básicas de quem precisa.

Devido ao volume de recursos necessário para colocar de pé um programa desses, porém, a proposta teria de ser discutida e aprovada na Câmara Municipal, onde a oposição estará em maioria, e dificilmente poderia ser incluída no orçamento para o ano que vem. Renda Solidária só em 2022?

Orçamento participativo

Boulos tem dito em debates e sabatinas que aprovará seus projetos em uma Câmara Municipal dominada pela oposição sem se render ao toma-lá-dá-cá da política tradicional, apenas com diálogo e com o respaldo popular que reunirá por meio do orçamento participativo, um sistema de consultas sobre as prioridades dos moradores que ele pretende implantar na cidade.

É possível que o diálogo seja uma das grandes habilidades de Boulos. Mas o orçamento participativo — por mais que a ideia amplie o engajamento da população com o poder público, permitindo que os moradores opinem onde querem que a prefeitura gaste o dinheiro dos impostos em seu bairro — dificilmente servirá para abrir portas ou aliviar tensões com a Câmara Municipal.

Em outras cidades onde o orçamento participativo foi implantado, como é o caso de Porto Alegre (RS), encontrou resistência dos vereadores, que viram no modelo uma tentativa de esvaziar as atribuições do legislativo e de se apropriar de suas bases eleitorais.

De onde virá o dinheiro?

As principais promessas de campanha de Boulos custariam 29 bilhões de reais. A chave para bancá-los estaria em uma frase que ele repete à exaustão: "A prefeitura tem 19 bilhões de reais parados em caixa". As agências de checagem de fatos já o desmentiram mais de uma vez, mas ele não abandona o bordão. Na realidade, o valor disponível é de 11,2 bilhões de reais. O restante já tem destinação certa.

Questionado sobre isso na sabatina UOL/Folha desta quinta-feira (26), Boulos reconheceu que o valor disponível em caixa para investimento não passa de 9 bilhões de reais — segundo ele, o suficiente para cumprir suas promessas.

Boulos também tem dito que irá recuperar 10 bilhões da dívida ativa, ou seja, do montante que empresas e cidadãos devem à prefeitura (de um total de pouco mais de 54 bilhões que ainda pode ser cobrado).

A atual gestão só conseguiu recuperar 6,2 bilhões de reais. Boulos diz ter um plano infalível para cobrar os devedores de maneira mais eficiente, mas a verdade é que esse é um dinheiro com o qual ele não pode contar de antemão. Seu plano infalível — contratar mais procuradores — pode não ter o efeito esperado, além de representar mais gastos para a prefeitura.

O risco, diante de tudo isso, é ter mais um governo muito bem-intencionado, mas que ignora os desafios das restrições orçamentárias ou que, simplesmente, não conseguirá tirar tudo o que promete do papel.