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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Após 1 mês de conflito, está claro que a guerra não é sobre a Ucrânia

18.mar.2022 - Um morador passa por um tanque de tropas pró-Rússia durante a guerra, em Mariupol - ALEXANDER ERMOCHENKO/REUTERS
18.mar.2022 - Um morador passa por um tanque de tropas pró-Rússia durante a guerra, em Mariupol Imagem: ALEXANDER ERMOCHENKO/REUTERS

Colunista do UOL

24/03/2022 12h47Atualizada em 24/03/2022 16h41

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Desde o início do conflito no leste europeu, temos discutido as motivações dos atores e suas consequências. Já debatemos, anteriormente nesta coluna, sobre demandas e interesses, crenças e percepções. Em se tratando de lições que se podem apreender desse conflito, também já listamos pelo menos dez.

Nesse dia que marca um mês da invasão russa, portanto, a principal e mais importante consideração que devemos ter em mente é a seguinte: está claro que essa guerra não é sobre a Ucrânia.

Muito embora as discussões geoestratégicas e de curto prazo versem, sim, sobre o território e o governo ucranianos, o que estamos testemunhando a partir desse conflito é uma ruptura de consideráveis proporções em matéria de política global. A crise na Ucrânia é um sintoma derradeiro do colapso da ordem internacional vigente há quase 80 anos.

Não se trata apenas de "mais um conflito". É um conflito substancialmente diferente de outros, que triangula interesses entre potências estabelecidas e novas potências, expõe suas diferenças, incômodos e ressentimentos, além de forjar movimentos revisionistas na arena internacional.

Trata-se de um conflito que marca o fim do ciclo que convencionamos chamar do "pós Guerra Fria" e que se arrasta, sem contornos muito precisos, desde a queda da União Soviética, passando pelo mundo do 11/09 e chegando à realidade pós-pandemia. Esse é um conflito que desnuda, diante dos nossos olhos:

  1. Uma nova fase da globalização;
  2. A consolidação de uma configuração de poder diferente da anterior; e
  3. A consequente necessidade de um novo pacto em matéria de governança global.

A literatura especializada em Relações Internacionais reconhece que toda "nova ordem" costuma acontecer a partir de rupturas, geralmente causadas por severas crises. Foi assim na era pós-napoleônica, com a Primeira e a Segunda guerras mundiais.

Toda ordem internacional é produto de uma determinada distribuição de capacidades entre os atores e da percepção, entre eles, de que, apesar das assimetrias, há certos objetivos em comum que, racionalmente, podem ser atingidos pela via da cooperação.

Na prática, significa dizer que uma determinada ordem, no contexto de um mundo anárquico, apenas se viabiliza quando os Estados reconhecem a legitimidade de certa dinâmica de poder dentro do sistema e possuem uma gama de desejos compartilhados entre si que permitem a criação de padrões de relacionamento.

Quando a distribuição de poder no mundo sofre significativas alterações, seja porque potências estabelecidas declinam ou porque novas potências emergem, a tendência é que também ocorram mudanças na ordem. Estamos falando na revisão de preferências e prioridades dos atores, na reavaliação de objetivos anteriormente tidos como comuns, e na reorganização, por fim, dos que se entendem os "patrocinadores" ou "desafiantes" do status quo.

A guerra na Ucrânia deixa claro que estamos diante de um momento marcado pela tensão entre o "retorno da geopolítica" clássica, com rompantes de nacionalismo e protecionismo, e de um mundo integrado, interdependente e cosmopolita. A guerra na Ucrânia sugere a consolidação definitiva de um sistema multipolar, marcado por interesses conflitantes entre os principais atores e valores heterogêneos. A guerra na Ucrânia escancara a necessidade de levarmos instituições, acordos e regimes internacionais para o divã. A realidade no leste europeu nesse momento é o espelho do que virá nesse século: um mundo mais instável e inseguro.