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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

China usa guerra para contrapor EUA, mas não tem razão para tomar lado

Putin e Xi Jinping: é fato que Rússia e China se aproximaram consideravelmente nos últimos tempos - Alexei Druzhinin/AFP
Putin e Xi Jinping: é fato que Rússia e China se aproximaram consideravelmente nos últimos tempos Imagem: Alexei Druzhinin/AFP

Colunista do UOL

18/03/2022 14h59Atualizada em 18/03/2022 17h15

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Desde o início do conflito entre Rússia e Ucrânia, temos destacado a importância em observar o comportamento chinês em relação a tudo isso. Escrevemos sobre isso aqui na coluna, inclusive.

É fato que Rússia e China se aproximaram consideravelmente nos últimos tempos. Já é considerado um marco discursivo relevante a declaração conjunta divulgada pelos dois países em 4 de fevereiro desse ano, depois do encontro entre Xi Jinping e Vladimir Putin, por ocasião da cerimônia de abertura da Olimpíada de Inverno, em Pequim.

No documento, os dois países desafiam abertamente as lideranças ocidentais. Falam em "mundo em transformação", em redistribuição de poder e em realidade multipolar. Criticam a ação unilateral de alguns países e, sem citar nomes, sua "insistência em interferir nos assuntos internos de outros Estados" enquanto "infringem seus direitos e interesses legítimos, e incitam contradições, diferenças e confrontos".

Nesse mesmo documento, Rússia e China questionam o conceito de democracia propagada no Ocidente.

Dizem: "Não existe um modelo único para orientar os países no estabelecimento da democracia. Uma nação pode escolher as formas e métodos de implementação da democracia que melhor se adaptem ao seu estado particular, com base em seu sistema social e político, seu histórico, tradições e características culturais únicas. Cabe apenas ao povo do país decidir se o seu Estado é democrático".

Nesse contexto, a especulação sobre uma aliança bilateral em face da crise no leste europeu ganhou muita força. Desde os primeiros ataques ao território ucraniano —em 24 de fevereiro— a China tem adotado postura hesitante. Evitou condenar publicamente a operação militar russa, mas não perdeu a oportunidade de criticar as sanções impostas pelo Ocidente.

Se absteve ao votar no âmbito da ONU e, com frequência, sugere compreender as razões históricas do movimento de Moscou.

Apesar disso, falar em alinhamento China-Rússia não é algo tão simples assim. Diferente do que sugerem os mais alarmistas de plantão, há alguns sinais que permitem questionar essa disposição de engajamento chinês em relação aos russos. Uma conversa rápida com conhecedores da China nos leva ao que não podemos perder de vista.

O mérito da análise, aqui, é de Aline Tedeschi e Bruno Hendler, especialistas cuja reflexão compartilho de forma sintética a seguir:

Parece claro que, por mais que interesse à China antagonizar os Estados Unidos em dados contextos —e a guerra na Ucrânia permite esse movimento— esse não é um comportamento livre de cálculo e análise de riscos para Pequim. Assim, se, por um lado, a China vê no descontentamento da Rússia com o Ocidente uma forma de marcar posição, por outro, tem clareza de seus próprios limites e prioridades.

Em primeiro lugar, à China não interessa ser vista como uma ameaça internacional. Há uma preocupação, por parte do governo daquele país, em como os demais Estados veem a China. Não é à toa, seus líderes são cuidadosos em manter, há décadas, uma narrativa de não-contestação da ordem existente e de convivência pacífica com Ocidente.

Em segundo lugar, não interessa à China comprometer a estabilidade regional da Ásia. Um conflito duradouro e que fuja ao controle, portanto, não é bem-vindo.

Em terceiro lugar, há prioridades domésticas que precisam ser acomodadas, antes de tudo. A China vive um duro período de recuperação pós-pandêmica. Tenta garantir crescimento econômico no exato momento em que sua elite política discute estratégias para o futuro e que está prestes a se reunir para determinar os rumos de Xi Jinping, no 20º Congresso Nacional do Partido Comunista, que ocorre no segundo semestre desse ano. Nesse contexto, qualquer tipo de insegurança ou incerteza vinda de fora não é boa aos olhos da liderança chinesa.

Em quarto lugar, do ponto de vista diplomático, é estratégico para a China manter a consistência em relação a certos princípios de sua política externa, especialmente no que tange ao respeito ao princípio da soberania e da não-violação da integridade territorial de um Estado. Tomar lado para defender a ação da Rússia, nesse caso, vulnerabilizaria o discurso chinês sem trazer qualquer benefício direto.

Por fim, em paralelo a tudo isso, não podemos nos esquecer de que, para além das afinidades de última hora, a relação entre China e Rússia, como é de praxe nas relações internacionais, não é necessariamente coesa e desprovida de diferenças.

Entre os vários atritos existentes entre os dois países estão desconfianças envolvendo o Ártico, questões demográficas e incômodos da China relacionados à cooperação militar entre Rússia e Índia, por exemplo.

Além disso, vale lembrar que a balança comercial entre ambos é consideravelmente assimétrica e que embora haja convergências no âmbito no Conselho de Segurança, por exemplo, falta alinhamento em outros fóruns internacionais e outras agendas, como é o caso de meio ambiente, por exemplo.

Ao ouvir quem entende do assunto, o diagnóstico que me parece claro é: tudo indica que a China flerta, por interesse de ocasião, com a Rússia, mas, nem de longe, isso significa um casamento duradouro.