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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Equivaler Zelensky a Putin na guerra da Ucrânia é propor uma falsa simetria

Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é capa da revista norte-americana Time nesta semana - Reprodução
Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é capa da revista norte-americana Time nesta semana Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

04/05/2022 14h20

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Ao aparecer na capa da revista Time, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva agitou as redes sociais. Para além do embate típico de uma disputa eleitoral polarizada, parte da polêmica se deu a partir de uma afirmação de Lula de que "Zelensky é tão responsável quanto Putin pela guerra na Ucrânia".

A leitura da entrevista na íntegra dá a impressão de que Lula tenta utilizar aquele espaço para enfatizar sua preocupação com um olhar independente das relações internacionais do Brasil. Ao longo de toda fala, ele reforça a preocupação em fazer do país um protagonista e resgata, nas entrelinhas, a ideia que já defendeu em seus governos: de uma política externa que seja capaz de dialogar com o Norte e o Sul globais mantendo sua autonomia.

Sem surpresa, portanto, Lula procura não atacar diretamente os parceiros tradicionais do Brasil, como Estados Unidos e Europa, ao mesmo tempo em que evita criticar abertamente aliados no mundo emergente, a começar pelos BRICS, dentre os quais está incluída a Rússia.

Apesar disso, enquanto acredita estar mantendo distância segura dos envolvidos em meio a um tema tão espinhoso, a fala de Lula é muito problemática, já que ela sugere uma falsa simetria sobre o conflito no leste europeu, algo que não é possível assimilar de forma acrítica.

Lula tem razão ao criticar a narrativa que se construiu, por conveniência das potências ocidentais, em torno de Volodymyr Zelensky. Maniqueísmos e arquétipos são velhos conhecidos na forma de construir e moldar a História. Representam recursos que, na maior parte das vezes, se apresentam como forma de simplificar a realidade e alimentar casamentos de ocasião. Não passam perto da complexidade e da profundidade que os temas realmente exigem.

Zelensky não é um estadista. É um populista que chegou ao poder alavancado por uma onda antissistema. Tampouco é uma figura passiva na crise com a Rússia, já que teve, e continua tendo, poder de agência durante todo o processo de agravamento do diálogo bilateral.

De mesmo modo, também é pertinente argumentar que essa guerra ocorre como um desdobramento de avanços imprudentes da OTAN, do não cumprimento de compromissos dos acordos de Minsk, e de decisões controversas da própria Ucrânia com relação a seus assuntos militares, como oferecer chancela institucional a membros do Batalhão de Azov, por exemplo, considerado um grupo neonazista por Moscou.

Nada disso, no entanto, justifica comparar Zelensky a Putin, no sentido de sugerir equivalentes responsabilidades pela crise que agora acompanhamos. Todos sabemos que o ataque à Ucrânia veio amparado por justificativas preemptivamente forjadas e de um senso de urgência amplamente discutível. Desde então, ela tem sido alimentada, para consumo doméstico, no contexto de um governo autocrático e nacionalista, que se fundamenta em bases religiosas e no apelo identitário que estimula ressentimentos.

A guerra iniciada pela Rússia é uma resposta desproporcional ao que ela própria entende como provocações do Ocidente. O conflito causa danos sem precedentes à estrutura do sistema internacional, envolve denúncias graves de desrespeito a todos os códigos de conduta existentes, afronta a dignidade humana e é condenável sob todas as circunstâncias.

Uma porção da esquerda, em várias partes do mundo, tem sido reticente em criticar a Rússia de forma contundente por entender que, ao fazê-lo, poderia enfraquecer o pacto de uma luta anti-imperialista que tem os Estados Unidos como foco principal. O problema é que esse tipo de escolha ignora as ambições imperiais da própria Rússia e seus efeitos mundo afora. Também coloca esses grupos políticos em posição constrangedora quando trazemos à tona temas como democracia, direitos humanos e uma série de valores liberais que são consistentemente violados por Moscou.

Guerras são complexas e falsas equivalências só comprometem ainda mais o seu entendimento. Zelensky e Putin não representam dois lados de uma mesma moeda. A régua de uma crítica precisa ser calibrada com cuidado. Nesse caso, tentando uma saída a la "pau que dá em Chico dá em Francisco", Lula forçou a barra.