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Jamil Chade

Diplomacia recebe ataques de Bolsonaro com mistura de chacota e preocupação

OMS - WHO/P. Virot
OMS Imagem: WHO/P. Virot

Colunista do UOL

30/04/2020 10h22Atualizada em 30/04/2020 23h02

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A publicação por parte do presidente Jair Bolsonaro de que a OMS estaria incentivando a masturbação infantil se transformou em alvo de chacota dentro da agência e em outras instituições. Mas fontes dentro das agências internacionais também interpretaram a série de ataques nos últimos dias como "preocupante" e um sinal claro de uma guinada na política externa do país, se distanciando de uma agenda multilateral para a saúde.

Nesta quinta-feira, prints de suas redes sociais foram compartilhadas por funcionários de entidades internacionais, inclusive com traduções livres como os novos ataques do presidente brasileiro.

Em suas redes sociais, Bolsonaro afirmou: "Essa é a Organização Mundial da Saúde (OMS) que muitos dizem que eu devo seguir no caso do coronavírus", iniciou. "Deveríamos então seguir também diretrizes para políticas educacionais?", questionou. Bolsonaro aponta que uma suposta recomendação da OMS para crianças de 0 a 4 anos: "Satisfação e prazer ao tocar o próprio corpo (masturbação); expressar suas necessidades e desejos por exemplo, no contexto de 'brincar de médico'. Instantes depois, ele apagou a publicação.

Oficialmente, a OMS indicou que não se pronunciaria sobre os comentários do presidente brasileiro. Nos bastidores, porém, o post de Bolsonaro gerou uma mistura de indignação, preocupação e chacota.

Para alguns, a "concorrência" entre alguns líderes para determinar quem expressa o maior número de absurdos durante a pandemia seria "intensa". Os comentários irônicos também circularam entre diplomatas estrangeiros.

Essa foi a segunda vez em que Bolsonaro, em apenas uma semana, atacou a OMS. Antes, ele havia dito que não seguiria as recomendações da instituição por conta do fato de que seu diretor sequer ser um médico. Tedros Gebreysus tem mestrado e doutorado no Reino Unido em Saúde Pública, além de ter sido ministro da Saúde.

Antes, foi a vez do chanceler Ernesto Araújo escrever um texto em que alertava para a infiltração de um plano comunista nas agências internacionais, entre elas a OMS. Apoiadores do governo em diferentes poderes também passaram a focar parte de seus ataques contra a OMS, num gesto que chamou a atenção por sua forma coordenada e termos parecidos.

Mas o comportamento vai além de chacotas. Por trás dos ataques, diplomatas temem que exista de fato uma tentativa clara do governo brasileiro em minar a credibilidade e retirar qualquer poder que a OMS possa ter na gestão da saúde. Nas reuniões, o governo praticamente passou a manter um incômodo silêncio, depois de décadas liderando temas de saúde na diplomacia internacional. Além disso, o Brasil soma hoje a quarta maior dívida com a agência, no valor de mais de R$ 140 milhões.

Ao longo dos últimos meses, o governo brasileiro vem ainda tentando vetar documentos na OMS e na ONU que estabeleçam a educação sexual como uma recomendação. O Brasil também assinou um documento comum com os EUA para declarar que é contra o estabelecimento de "novos direitos".

Educação sexual

O escritório da OMS na Europa de fato trabalhou em um documento com um instituto alemão, com o objetivo de ajudar os pais na educação sexual de crianças. Em nenhum momento o texto fala em masturbação ou incentivar a homossexualidade.

Outro documento que serve de referência internacional sobre educação sexual foi publicado em 2018 pela Unesco e é chancelado pela OMS. Ele de fato tece um plano para que escolas e educadores possam lidar com a questão da sexualidade entre as crianças. Mas o guia começa a partir dos cincos anos, com conceitos como amor, respeito e o reconhecimento de gênero. Além disso, o guia admite que, entre cinco e oito anos, "é natural ter curiosidade a seu respeito, inclusive os órgãos sexuais e reprodutivos".

Cabe aos educadores ajudarem as crianças a ter conhecimento sobre as partes genitais e "descrever sua função básica" . O guia ainda cita a necessidade de que crianças tenham o conhecimento de poder "identificar de que maneira os corpos do homem, da mulher, da menina e do menino são iguais, de que maneira são diferentes, e como mudam com o passar
do tempo".

Um aspecto da educação sexual passa pela auto-confiança. "As pessoas devem gostar do próprio corpo, pois todo corpo é especial e único". No que se refere a isso, os educadores são instruídos a incentivar as crianças a se expressarem sobre "como se sentem a respeito do próprio corpo".

A educação ainda passa pelo reconhecimento de que existe o prazer. Crianças devem entender, portanto, que é "natural que os seres humanos desfrutem do corpo e tenham intimidade com outras pessoas ao longo da vida". Não, porém, qualquer referência à masturbação ou sobre como se envolver relações sexuais no guia na faixa entre cinco e oito anos.

Para os adolescentes a partir de 15 anos, a estratégia "promove o direito de escolher quando e com quem uma pessoa terá qualquer forma de relação íntima ou sexual; a responsabilidade dessas escolhas; e respeitando as escolhas dos outros a esse respeito. Essa escolha inclui o direito de abster-se, de retardar ou de se envolver em relacionamentos sexuais", disse.

As agências ainda fazem questão de apontar para levantamentos que revelaram o impacto positivo da educação sexual. Tal iniciativa não aumenta a atividade sexual, o comportamento sexual de risco ou as taxas de infecção por HIV.