Relatoria da ONU propõe inquérito internacional contra Brasil
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Resumo da notícia
- Recomendação é inédita em período democrático brasileiro e tem como base violações ambientais e de direitos humanos
- Informe diz que crise ambiental no Brasil pode gerar consequências para todo o planeta
- Negociadores avaliam que a proposta, que depende de apoio de outros países, dificilmente será aprovada
- Proposta ocorre na semana em que TPI revela que irá arquivar temporariamente parte das denúncias contra o Brasil. Queixas sobre Amazônia são mantidas
- Inquéritos da ONU sobre países incluem governos como da Síria, Venezuela, Coreia do Norte e Mianmar
Pela primeira vez em seu período democrático, o Brasil é alvo de uma recomendação oficial para que o governo seja objeto de uma investigação internacional por suas políticas ambientais e de direitos humanos.
A iniciativa partiu do relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas), Baskut Tuncak, responsável pelos temas de resíduos tóxicos e direitos humanos. Sua proposta é de que o Conselho de Direitos Humanos aprove a abertura de uma investigação. Para que isso ocorra, porém, governos teriam de apresentar um projeto de resolução e aprovar a proposta por um voto da maioria.
Para experientes negociadores, tal cenário hoje na ONU seria improvável.
Mas o pedido reflete um mal-estar sem precedentes entre o governo brasileiro e os enviados independentes da ONU. O relator realizou uma missão ao Brasil no final de 2019 e, ao preparar seu informe, constatou sérias violações nas obrigações ambientais e de direitos humanos do país, inclusive no contexto da pandemia da covid-19.
Tunkat concluiu seu mandato em meados do ano e o informe será apresentado pelo novo relator, Marcos Orellana.
O informe também avaliou as queimadas, ataques contra defensores de direitos humanos, a situação dos pesticidas, além da resposta do Estado diante de Brumadinho, Mariana e do derramamento de petróleo nas praias nacionais. O texto será entregue ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, no final desta semana.
Documento coloca Brasil ao lado da Síria
O informe ainda recomenda que a ONU realize "uma sessão especial sobre a proteção da floresta Amazônica e dos direitos humanos, assegurando a participação ativa de todos os interessados". Sessões especiais apenas são solicitadas para crises graves, como na crise da Venezuela, a repressão na Bielorússia ou Síria.
Procurado, o Itamaraty não se pronunciou. O governo, no dia 18, irá responder ao informe durante reunião da ONU, em Genebra (Suíça).
Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, queixas foram apresentadas ao Tribunal Penal Internacional por diferentes sindicatos e ONGs. Nesta semana, a corte arquivou temporariamente as denúncias relacionadas ao papel do governo na resposta à covid-19, considerando que precisaria de mais provas para justificar o inquérito. Queixas sobre a Amazônia e a situação de indígenas ainda estão sob análise.
Mas, desta vez, o pedido vem de um dos mecanismos especiais da ONU e não fala de crimes contra a humanidade, mas de um Estado que não cumpre suas obrigações legais de defender sua população, além de prejudicar o mundo por conta da destruição das matas.
Descontrolado, Brasil pode gerar catástrofe de proporção global, diz documento
O relator faz uma convocação aos governos estrangeiros e às entidades para que atuem com o objetivo de frear o que ocorre no país. "Se deixada sem controle, a situação no Brasil se transforma não apenas em uma catástrofe nacional, mas também em uma catástrofe com repercussões regionais e globais fenomenais, incluindo a destruição de nosso clima", alerta o documento.
Entre embaixadores estrangeiros consultados pela coluna, muitos acreditam ser improvável que a investigação siga adiante, mas destacam que, pela primeira vez desde o final da ditadura militar, uma proposta concreta é submetida para que se abra uma investigação contra o Brasil, com um constrangimento diplomático sem precedentes.
Hoje, apenas países como Síria, Coreia do Norte, Mianmar, Venezuela ou Burundi contam com inquéritos específicos por parte da ONU.
Se fosse aberta, a investigação colocaria o Brasil de forma permanente na agenda de direitos humanos das Nações Unidas.
"Brasil está em um estado de profundo retrocesso"
O informe, porém, indica que haveria legitimidade para um processo similar sobre o Brasil. "Apesar dos avanços positivos nas últimas décadas, o Brasil está em um estado de profundo retrocesso em relação aos princípios, leis e normas de direitos humanos, em violação ao direito internacional", diz. "Para apoiar suas ações e inações, o governo continua a negar verdades científicas incontroversas e introduz sem justificativas incertezas e argumentos míticos", alerta.
O informe aponta que atores privados são sinalizados para "desconsiderar as leis destinadas a salvaguardar os bens comuns globais e os direitos dos povos indígenas e das pessoas de descendência africana".
"Os crimes corporativos contra trabalhadores e comunidades são perpetrados com impunidade, e os direitos à informação e participação são reduzidos drasticamente", alerta.
"Várias decisões judiciais e parlamentares não são implementadas quando desfavoráveis aos interesses privados. A retórica inflamatória, a rejeição da sustentabilidade e o fracasso em processar tem incendiado outra epidemia, uma de intimidação, ataques e assassinato de defensores dos direitos humanos", denuncia o pedido de investigação.
A "boiada" de Salles
De acordo com o documento, depois de diversos avanços desde o ano 2000 na preservação do meio ambiente, o atual governo promoveu uma mudança no rumo do país.
"Hoje, o Brasil está em um caminho íngreme de regressão da sustentabilidade e dos direitos humanos", diz o documento. "As imagens das queimadas desenfreadas da floresta Amazônica se tornaram um visual assustador desta descida e do desgaste do compromisso do Brasil com estes valores e princípios internacionais. No entanto, grande parte desta regressão é invisível", alerta.
Para o relator da ONU, "vídeos recentes de ministros conspirando para usar a crise do coronavírus para enfraquecer as proteções validam as preocupações". Ele se referia à sugestão do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, numa reunião de 22 de abril de usar a pandemia para "passar a boiada" no que se refere às mudanças de leis.
O informe ainda se dedica a avaliar os incêndios na Amazônia e em outras partes do país. "Sem a Amazônia, o mundo seria atingido pela devastação das mudanças climáticas, matando inúmeras pessoas e empurrando milhões para a miséria. A queimada da floresta Amazônica representa um risco catastrófico para os direitos humanos de bilhões de pessoas em todo o mundo", constata.
Incêndios florestais geram 67% das emissões do Brasil, diz relatório
De acordo com o documento a poluição do ar através dos incêndios florestais libera 67% das emissões no Brasil e o desmatamento pode levar a novas pandemias. "A destruição do habitat florestal também corre o risco de introduzir mais doenças zoonóticas que podem se transformar em outra pandemia global", diz.
O relator da ONU insiste que o Brasil fez "progressos significativos e louváveis" na contenção do desmatamento, com uma queda de 82% nos dez anos anteriores a 2014, designando áreas protegidas, reforçando a lei e a aplicação da lei, e implementando a imagem por satélite.
O documento diz que, "de maneira perturbadora", a fiscalização do que parece ser uma operação criminosa de grande escala, como a perpetração dos incêndios na Amazônia, é "praticamente inexistente" e a impunidade reina.
De acordo com o documento, a Funai (Fundação Nacional do Índio) está operando com apenas 10% de seu orçamento, enquanto outros organismos foram totalmente eliminados.
"Noventa por cento da população ianomâmi tem níveis altamente perigosos de mercúrio em seus corpo", destaca o documento.
País mortífero para os defensores dos direitos humanos
De acordo com o relatório, a sociedade civil e os sindicatos "estão sob ataque no Brasil". "Os líderes, sem qualquer fundamentação, defendem o termo 'terroristas', culpando-os por desastres ambientais como o derramamento de petróleo de agosto de 2019", diz. "Instituições com mandato para garantir a participação da sociedade civil foram minadas, enquanto outras estão agora fechadas à participação", alerta.
O informe revela que o Brasil foi o país mais mortífero para os defensores dos direitos humanos ambientais em 2016, e ficou em quarto lugar em 2018, com números que apontam para um aumento em 2019.
Mais de 300 pessoas foram assassinadas de 2009 a 2019 em relação a conflitos de terra e recursos na Amazônia, muitos por perpetradores de corte ilegal de madeira, mas apenas 14 casos foram a julgamento. "O fato de não tratar dessa impunidade reforça a noção de que tais violações de direitos humanos podem ser toleradas", adverte.
De acordo com o informe do relator da ONU, outro debate se refere ao papel da ciência e da saúde no atual governo. "Onde ela não é ignorada, a ciência está sob ataque no Brasil", constata.
"São preocupantes os relatos de interferência política em vários níveis para suprimir a coleta, o compartilhamento ou a publicação de dados de saúde", destaca o informe. O documento chama a atenção para a retirada do ar do site que monitora a covid-19 do Ministério da Saúde, e o descrédito das estatísticas de casos, já impedido pela baixa capacidade de realizar testes e pela lenta implementação de kits de testes, dados de saúde obscurecidos, particularmente em relação às favelas e áreas rurais", afirma.
Mais e mais pesticida
Outro ponto destacado pelo informe é o aumento do uso de pesticidas no Brasil em mais de 338% desde 2000. "O Brasil tem estado entre os três maiores consumidores de pesticidas do mundo, e às vezes o maior consumidor por mais de uma década", diz.
Segundo o informe, o relator recebeu denúncias sobre o suposto uso de pesticidas como "armas químicas" para expulsar as comunidades indígenas e afro-brasileiras de suas terras.
Outro alerta se refere ainda à tendência de aprovação de novos pesticidas como sendo "preocupante". "Trinta por cento dos ingredientes ativos (116 de 393 substâncias) no Brasil não são aprovados na UE", constatou o relator da ONU. Somente em 2019, o Brasil permitiu a introdução de 474 novos produtos pesticidas", completou.
Entre as dezenas de recomendações ao Estado brasileiro, o relatório pede que um modelo de crescimento econômico não dependa da degradação ambiental, além da mobilização urgente de recursos e capacidade para monitorar e aplicar todas as proteções ambientais.
O documento sugere ainda que se respeite o "papel fundamental da participação pública na democracia e na boa governança, incluindo o papel inestimável dos defensores dos direitos humanos, e proteger plenamente este compromisso".
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