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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Brasil não apoia projeto indiano de suspensão de patentes de vacinas na OMC

Jair Bolsonaro recebe o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para reunião no Palácio do Planalto - Alan Santos/PR
Jair Bolsonaro recebe o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para reunião no Palácio do Planalto Imagem: Alan Santos/PR

Colunista do UOL

10/03/2021 16h08Atualizada em 11/03/2021 14h51

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Depois de passar semanas em silêncio para evitar um choque com a Índia sobre as vacinas contra a covid-19, o governo brasileiro voltou a se opor à ideia apresentada pelos países em desenvolvimento para suspender as patentes dos produtos. O governo foi o único entre os países emergentes a assumir tal postura.

Numa reunião nesta quarta-feira, na Organização Mundial do Comércio (OMC), a situação das vacinas e o acesso aos imunizantes uma vez mais foi alvo de um debate e de um racha entre os governos.

De um lado, indianos e sul-africanos voltaram a insistir que a escassez de vacinas no mundo seria em parte resolvida se as empresas abrissem mão de suas patentes e permitissem a produção dos produtos em versões genéricas, por laboratórios em todo o mundo.

A proposta é alvo de ataques por parte dos governos europeus, americanos e outros países desenvolvidos, que insistem que quebrar patentes não resolveria a crise. Esses governos também alertam que a iniciativa mandaria uma mensagem equivocada para o setor que fez investimentos para garantir as descobertas médicas.

Já no ano passado, quando a proposta primeiro foi apresentada, o Brasil surpreendeu os demais países em desenvolvimento ao ser o único emergente a abertamente criticar a proposta da Índia.

Mas, quando o Itamaraty teve de negociar acesso às vacinas da AstraZeneca, produzidas na Índia, a opção do governo foi por manter silêncio durante as reuniões.

Agora, o governo voltou a tomar uma posição, ainda que tenha defendido que acordos sejam feitos entre o setor farmacêutico e governos para transferência de tecnologia. Isso, porém, não significa a suspensão de patentes.

Nesta quarta-feira, o Brasil foi o único país em desenvolvimento a falar abertamente que era contrário à suspensão das patentes. A delegação brasileira insistiu que os acordos de propriedade intelectual que hoje existem na OMC já seriam suficientes para proteger a saúde pública e garantir instrumentos para que países tenham acesso às vacinas e tratamentos.

De acordo com o Itamaraty, as flexibilidades nos acordos da OMC, como licenças compulsórias, poderiam ser usadas para acelerar o fornecimento de remédios, tratamentos e vacinas.

A posição brasileira não é a mesma dos indianos e sul-africanos, que insistem que os atuais mecanismos não são ágeis suficientes e nem amplos para garantir um maior acesso aos produtos.

O governo brasileiro ainda elogiou os esforços da direção da OMC e afirmou que está disposto a trabalhar em "iniciativas pragmáticas" para ampliar a produção de vacinas e para facilitar a transferência de tecnologia. Mas deixou claro que isso deveria ocorrer "dentro das regras multilaterais".

Em nome dos patrocinadores da proposta, a Índia tomou a palavra para enfatizar que o mundo não está produzindo vacinas suficientes para acabar com a pandemia, apesar da existência de vários produtos aprovados e da capacidade de fabricação de vacinas não utilizadas no mundo.

Na avaliação dos indianos, a proposta de suspender as patentes representa uma solução global "aberta e rápida" para permitir uma colaboração ininterrupta na produção e fornecimento de produtos e tecnologias.

O delegado indiano lamentou ainda que, apesar de a proposta ser apoiada por mais de 100 membros, algumas delegações continuam a se opor. Segundo ele, quem impede que a proposta seja adotada são os mesmo governos que "acumularam mais vacinas do que precisam", agravando a desigualdade global.

Para os indianos, porém, alguns países que tinham se recusado inicialmente a pensar na possibilidade de suspensão de patentes, como Austrália, Canadá, Chile e México, tinham finalmente reconhecido o sério desafio da produção e distribuição de vacinas.

Já África do Sul insistiu que a comunidade internacional não pode mais arrastar o debate e que quer se lançar em negociações sobre o escopo e a duração da proposta.

Os sul-africanos também rebateram a ideia do Brasil e de outros governos do uso de licenças compulsórias, alegando falta de transparência e um escopo geográfico limitado que exclui até mesmo muitos países em desenvolvimento de serem beneficiados. "Se isso pudesse funcionar, já deveria ter funcionado", disse.

Para ele, tal sistema não funcionou para a pandemia de HIV, na qual pelo menos 11 milhões de vidas africanas foram perdidas porque não havia acesso a medicamentos que salvam vidas. "E isso foi em parte devido e talvez potencialmente às práticas das empresas farmacêuticas", disse.

"Temos que aprender com nossos erros passados e garantir que a experiência de licenças voluntárias sigilosas e limitadas e restritas não se repita", afirmou a delegação sul-africana.

Para eles, a pandemia tem revelado como o modelo de negócios é insustentável e como a indústria farmacêutica maximiza seus lucros em detrimento dos interesses públicos legítimos.

A África do Sul também destacou "hipocrisia" dos países ricos que, diante da quebra de patentes em casos específicos, questionaram governos como o da Rússia, Colômbia, Indonésia ou Hungria.

O delegado sul-africano também considerou desonesto e uma "deturpação grosseira da realidade" o argumento de que a suspensão de patentes não afetaria a produção global.

Para os países que se negam a apoiar a proposta, fabricar uma vacina não seria simples e nem todos poderiam fazer. Mas o delegado expressou dúvidas sobre as reais intenções dos países desenvolvidos quando falam de transferência de tecnologia. "Nunca vi países desenvolvidos entusiasmados com a transferência de tecnologia", completou.