Topo

Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Negociação para fiscalização de futuras pandemias vive crise; Brasil hesita

Vista área do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus - Michael Dantas/AFP
Vista área do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus Imagem: Michael Dantas/AFP

Colunista do UOL

28/04/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Resumo da notícia

  • China e Rússia resistem à ideia de exigências de compartilhamento de dados proposta por EUA e Europa
  • Projeto prevê grupo independente de monitoramento de surtos, o que causa desconforto entre países em desenvolvimento
  • Em 2020, Brasil co-patrocinou proposta de reforma da OMS ao lado de Donald Trump

A reforma da OMS (Organização Mundial da Saúde) abre uma disputa entre as principais potências, que não chegam por enquanto a um entendimento sobre qual será o novo modelo de agência e qual seria o poder que o organismo teria para fiscalizar e monitorar surtos pelo mundo.

Com a eclosão da pandemia da covid-19, houve um consenso que a OMS não contava com instrumentos adequados para garantir a transparência por parte de países e nem poder para examinar crises sanitárias domésticas.

O ex-presidente americano Donald Trump chegou a deixar a agência, em protesto contra o que vendeu como uma postura excessivamente pró-chinesa por parte da OMS. Europeus e o próprio governo de Joe Biden entenderam que precisavam reforçar a agência. Mas sob a condição de que seu papel no mundo mudasse.

Nos bastidores, as negociações ganharam nas últimas semanas um ritmo intenso, com o objetivo de que, até maio, uma resolução seja aprovada por ministros da Saúde de todos os países. O texto será, no fundo, a base de uma nova OMS, capaz de responder de uma forma mais eficiente a uma eventual nova pandemia.

Americanos, australianos e europeus defendem que sejam criadas equipes de monitoramento independente, além de uma maior transparência por parte dos governos sobre o compartilhamento de dados, cepas e sequenciamento genético de eventuais vírus que possam surgir.

Eles também querem que governos sejam obrigados a prestar certas informações, no caso de um surto.

Mas o projeto encontra agora uma forte resistência por parte da China e da Rússia, que não estão dispostos a abrir seus países para controles sanitários externos. Num dos trechos do rascunho da resolução, obtida pela coluna, tanto as autoridades de Pequim como de Moscou solicitam que a referência a uma "investigação" de eventuais surtos e eventos de interesse público seja substituída pela palavra "avaliação".

Os chineses ainda querem que seja incluída no texto uma explicação de que qualquer gesto tomado por organismos internacionais deva seguir "leis e regras nacionais e internacionais". Na prática, isso permitiria que um governo evoque uma determinação doméstica para se recusar a compartilhar dados, sequenciamento genético ou abrir suas fronteiras para uma missão sanitária.

Há ainda uma resistência por parte dos chineses na inclusão de qualquer referência na resolução sobre a necessidade de que as origens de um vírus sejam investigadas. Pequim levou um ano para autorizar a entrada de uma equipe internacional da OMS para avaliar o ponto de partida do novo coronavírus.

Brasil vê projeto com desconfiança

Apesar de não rejeitar a proposta da mesma forma que China e Rússia, outros países em desenvolvimento, inclusive o Brasil, suspeitam que os mecanismos que estão sendo propostos poderiam abrir uma porta perigosa para intervenções, sob o manto de uma ação sanitária, inclusive em locais estratégicos como na Amazônia.

O cálculo é de que, em grande parte dos novos surtos, a ameaça vem a partir de locais com maior biodiversidade, com clima tropical e doenças negligenciadas. Ao exigir maior transparência, portanto, o peso recairia de forma desigual, com países em desenvolvimento mais pressionados a permitir um maior controle externo.

Os esforços e compromissos por parte dos países ricos, portanto, não seriam os mesmos, pela natureza do mapa de surtos hoje pelo mundo.

Apesar da desconfiança brasileira, o Itamaraty foi um dos co-patrocinadores da proposta lançada em 2020 pelo governo de Donald Trump de reforma da OMS e da mudança de mecanismos. Para negociadores estrangeiros, isso acaba criando um constrangimento para o governo brasileiro, hoje mais hesitante em embarcar por um caminho de mais poderes para a agência internacional.