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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Rascunho de acordo sobre vacinas ameaça ideia de suspensão de patentes

Vista área do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus - Michael Dantas/AFP
Vista área do cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus Imagem: Michael Dantas/AFP

Colunista do UOL

04/05/2021 05h00

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Resumo da notícia

  • Resolução será votada no final do mês, na OMS. Mas foi recebida com gosto de derrota para países em desenvolvimento
  • Nesta quarta-feira, OMC debate assunto e administração Biden é pressionada a reavaliar sua posição
  • Ideia de sul-africanos e indianos, apoiada por mais de 60 países, previa suspender patentes de vacinas enquanto a pandemia durar
  • Meta é a de permitir que laboratórios em todo o mundo possam fabricar versões genéricas, ampliando a disponibilidade de doses
  • Dados da UE e dos EUA revelam como o setor privado gastou milhões de dólares para fazer lobby contra a suspensão de patentes

Um rascunho de uma resolução sobre vacinas contra a covid-19 na OMS (Organização Mundial da Saúde) omite qualquer referência explícita à ideia de uma suspensão de patentes, um dos principais debates políticos no mundo diante da dificuldade em garantir a distribuição de doses para os países mais pobres.

Num documento sobre como ampliar a produção local de vacinas e que será colocado à votação em 20 dias, governos tratam de temas como a transferência de tecnologia e acordos para que, de forma voluntária, licenças sejam autorizadas para que laboratórios pelo mundo possam fabricar doses dos imunizantes.

Mas o texto sequer menciona o projeto liderado pelos sul-africanos e indianos de que todas as patentes de produtos relacionados com a covid-19 sejam suspensas enquanto durar a pandemia. Para diplomatas de países em desenvolvimento, o rascunho do acordo tem um gosto de derrota, ainda que os negociadores admitem que, diante da recusa dos países ricos, pouco poderiam avançar.

Em outubro do ano passado, os dois países causaram um terremoto político e diplomático ao propor que, diante da pandemia, toda a propriedade intelectual sobre tratamentos, equipamentos e vacinas fosse flexibilizada. Mais de cem países em desenvolvimento passaram a apoiar a ideia.

Mas os países ricos e o Brasil se recusaram a aceitar a ideia, alegando que a quebra de patentes não resolveria a questão da distribuição de vacinas e que poderia ser um sinal "perigoso" para o mercado e inovação.

O debate ocorre na Organização Mundial do Comércio e, nesta semana, governos terão de chegar a um entendimento sobre como proceder com a negociação.

Mas, na resolução sob negociação na OMS e que será submetida durante a Assembleia Mundial de Saúde, no final do mês, a proposta sucumbiu à pressão das grandes empresas farmacêuticas e dos países ricos.

Em versões anteriores do projeto de resolução, o texto se referia à suspensão, o que colocava a questão como um dos caminhos a ser explorado. No rascunho final da resolução, porém, o termo desapareceu.

O novo texto ainda cita as flexibilidades já previstas nos acordos comerciais da OMC e destaca como tais medidas devem ser "interpretadas e implementadas de forma a apoiar o direitos dos países em proteger a saúde pública e promover o acesso à medicamentos". Mas o texto também "reconhece que a proteção à propriedade intelectual é importante para o desenvolvimento de novos medicamentos".

No que se refere às negociações sobre a suspensão de patentes, o texto apenas menciona que governos "tomam nota da discussão na OMC e outras organizações internacionais relevantes, incluindo sobre opções inovadoras de fortalecer o esforço internacional em direção a uma produção e distribuição mais equitativa de remédios contra a covid-19".

Lobby milionário toma conta do processo

Nas últimas semanas, a realidade é que a proposta de isenção de patente para produtos relacionados à pandemia obrigou as grandes empresas farmacêuticas e grupos empresariais a mobilizar lobistas e milhões de dólares em algumas das principais capitais do mundo.

Nos EUA, dados divulgados sobre a atividade de lobby no Senado no primeiro trimestre de 2021 apontam como dezenas de escritórios de advocacia e indivíduos se registraram nesse esforço, alegando que seu trabalho está relacionado à proteção de patentes e à proposta de renúncia de propriedade intelectual na OMC.

Os arquivos da Câmara de Comércio dos EUA, por exemplo, indicam mais de 17 milhões de dólares em atividade de lobby e, entre os temas tratados, um deles é claro: "Organização Mundial do Comércio, proposta pendente relacionada à COVID-19 e aos direitos de propriedade intelectual".

A AstraZeneca também reforçou seu exército de lobistas, com gastos de 870 mil dólares em questões no Senado relacionadas com "vacinas COVID-19". A Pfizer, por sua vez, mencionou "questões envolvendo comércio internacional, incluindo proteção da propriedade intelectual" em uma das dezenas de registros de pessoas listadas para trabalhar para a empresa no Senado e em outros lugares.

Diferentes associações de fabricantes também listam "questões de patentes" como seu foco, enquanto uma delas registrou doze lobistas diferentes em Washington DC..

Biden sob pressão

A pressão, entretanto, está crescendo por parte dos legisladores e instituições, a fim de promover uma mudança na posição dos EUA em relação às patentes.

Na semana passada, o senador Bernie Sanders e outros apelaram ao presidente Joe Biden para que mudasse de postura. "Sobre esta questão de saúde extremamente importante, esta questão moral, os Estados Unidos têm que fazer a coisa certa", disse ele.

Na semana passada, parlamentares britânicos solicitaram ao governo a publicação de todas as comunicações, e-mails, mensagens telefônicas e documentos de conversas entre a administração de Boris Johnson e as empresas farmacêuticas. O objetivo é entender se o lobby privado influenciou a oposição de Londres na OMC.

Na UE, quase 400 membros do Parlamento Europeu e dos parlamentos nacionais assinaram um apelo conjunto expressando seu apoio à renúncia.?

Mas em documentos obtidos pelo Corporate Europe Observatory, um grupo de pesquisa e campanha com sede em Bruxelas, as empresas farmacêuticas se certificaram de que a Comissão Europeia levaria em conta sua opinião ao discutir a questão das patentes, em Genebra.

Segundo o grupo, a Federação Europeia das Indústrias e Associações Farmacêuticas gastou 5,5 milhões de euros em 2020 com 25 lobistas em Bruxelas. Um ano antes da pandemia atingir o continente, eles gastaram 4,6 milhões de euros.

Os documentos mostram como a entidade fez lobby em 9 de dezembro de 2020, em uma reunião com representantes comerciais da Comissão Europeia. A fim de convencer que uma renúncia não era o caminho a ser tomado, a entidade "apresentou o cenário de colaborações que os desenvolvedores de vacinas, bem como os que trabalham nos tratamentos COVID-19, se engajam para aumentar a capacidade de fabricação e o fornecimento geral de vacinas e tratamentos".

Durante a reunião, eles listaram "1100 tratamentos e potenciais vacinas" e argumentaram que a indústria tinha a "capacidade de enfrentar a pandemia". O obstáculo não eram as patentes, mas a "preparação dos países" e as "aprovações regulamentares oportunas".

Eles também se comprometeram a "se envolver em acordos de fabricação, que podem incluir transferência de tecnologia, processo com licenciados cuidadosamente selecionados ou fabricantes contratados".

Um documento apresentado à UE também alegou que a proposta sul-africana e indiana "representa uma medida extrema para um problema não identificado". As patentes, por outro lado, eram uma "força capacitadora" para o desenvolvimento de vacinas e para a cooperação entre empresas e governos.

Quatro meses depois, em um discurso na OMC em 10 de março de 2021, a UE seguiu quase de forma literal a recomendação da indústria e "apelou (aos demais países) para uma cooperação pública/privada muito mais estreita, mais integrada e mais estratégica com a indústria".

"Devemos concentrar nossos esforços na cooperação com empresas farmacêuticas, a fim de assegurar que elas firmem acordos de licença com empresas em todo o mundo que tenham a capacidade de produção necessária e possam exportar as vacinas para qualquer país de menor renda sem produção", completaram.