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Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Na ONU, Brasil omite fome e mortes de covid, e informe vira campanha

Com fome, homem procura comida no lixo em São Paulo - Reinaldo Canato/UOL
Com fome, homem procura comida no lixo em São Paulo Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Colunista do UOL

29/08/2022 09h54

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Num informe apresentado pelo governo de Jair Bolsonaro às Nações Unidas, o país omitiu os dados sobre a situação social brasileira, ignorou a fome e não fez qualquer menção sobre o número de mortes pela covid-19, um dos mais elevados do mundo. Tampouco existem referências sobre a violência policial, desmatamento e o desmonte das instituições de monitoramento de direitos humanos no país.

O documento foi entregue pelo governo como parte da sabatina que a gestão de Bolsonaro será submetida em novembro, no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Para observadores, porém, o informe foi transformado em um ato de campanha eleitoral, com uma lista de programas e medidas adotadas pelo governo, sem citar a realidade dos problemas que o país enfrenta.

Todos os governos são submetidos à Revisão Periódica Universal (RPU), na ONU, um exercício para avaliar se um governo está cumprindo suas obrigações internacionais. Mas, para uma rede de entidades da sociedade civil, movimentos sociais e ativistas, o documento "está muito longe de espelhar a triste realidade atual, os desmontes e os retrocessos dos direitos humanos havidos no país nos últimos anos".

Procurado nesta manhã, o Itamaraty ainda não deu respostas sobre os questionamentos colocados pela reportagem. Caso o faça, os comentários serão incorporados no texto.

Logo no início do documento oficial, o governo alega que o atual informe apenas complementa os dados que já foram apresentados pelo país em 2019. Numa avaliação de cada um dos pontos do informe, porém, o Coletivo RPU acusa o governo de "repetir o negacionismo, o retardo e a desproteção da população, os ataques e o desmonte das políticas de direitos humanos".

O Coletivo RPU - Brasil é a principal coalizão nacional composta por 31 entidades, redes e coletivos da sociedade civil brasileira. A iniciativa, coordenada pelo IDDH, tem por objetivo acompanhar a implementação das recomendações da revisão da ONU e cobrar transparência do Estado Brasileiro para ampliar a participação social. Entre as entidades que fazem parte do movimento está a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Artigo 19, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Conselho Indigenista Missionário, Conectas e Movimento Nacional dos Direitos Humanos.

Apesar de listar cada uma das ações tomadas pelo governo, o informe oficial ignora a dimensão dos problemas. Para o Coletivo RPU, "há temas inteiros a descoberto, como a questão de defensoras e defensores de direitos humanos". "A qualidade da informação disponibilizada, dada a complexidade dos temas, é no mínimo insuficiente", diz.

Num documento paralelo, o Coletivo RPU Brasil apontou que a maioria absoluta das recomendações feitas ao governo há quatro anos ou não foram cumpridas ou apresentam retrocessos.

Saúde e covid-19

No documento oficial, por exemplo, não há qualquer referência aos mais de 600 mil mortos pela covid-19 e os ataques de Bolsonaro contra as vacinas. O documento do governo cita os diferentes programas de apoio à população no caso da covid-19. Mas, para as ongs, tais referências não mostram a realidade da crise. Segundo eles, a pandemia "foi tratada de forma irresponsável pelo Executivo Federal e genocida em relação a populações específicas, como as quilombolas e indígenas".

Ao explicar suas prioridades, o governo afirmou que "as políticas de direitos humanos empreendidas pelo Estado brasileiro foram orientadas para garantia dos direitos essenciais das populações mais vulneráveis".

"Assim, entre os públicos priorizados pelas políticas públicas, destacam-se mulheres, crianças e adolescentes, idosos, povos e comunidades tradicionais e pessoas com deficiência, principalmente. No contexto da pandemia de COVID-19, que assolou o mundo nos anos, tais grupos estão entre os cerca de 68 milhões de brasileiros diretamente e prioritariamente contemplados pelo Auxílio Emergencial que buscou mitigar os efeitos financeiros da pandemia nas pessoas e nas famílias, pois mães chefes de família receberam o auxílio financeiro em dobro, em atenção a sua condição de maior vulnerabilidade", garantiu.

Nesse contexto, o governo ainda indicou que agiu para comprar vacinas. Mas ocultou a demora na compra das doses, a decisão de não fazer parte inicialmente de projetos internacionais e a insistência com a aquisição de remédios sem comprovação de eficácia.

No que se refere aos temas mais globais de saúde, as entidades alertam que o Brasil "é um país doente". "O sistema público de saúde, apesar de belo na palavra, tem muita lacuna, dificuldade de infraestrutura, de pessoal capacitado e, após o Teto de Gastos (Emenda Constitucional n. 95/2016), retrocedeu o nível de financiamento que existia na época de sua implantação", alertam. Eles ainda apontam que os direitos à saúde reprodutiva "estão em desmonte, com profissionais de saúde que usam de preconceito para recusar serviços básicos humanizados principalmente às mulheres e meninas".

Ao contrário do que o Itamaraty insiste em apresentar aos órgãos internacionais e enquanto seus diplomatas em Brasília se esforçam em criar realidades paralelas sobre o país, as entidades apontam que a crise no setor é grave.

"O Brasil está em retrocesso acelerado no setor da saúde, ampliando a vulnerabilidade das camadas mais pobres da população, mas não se restringindo a tal, pois atinge todas as classes sociais, principalmente no crescimento das violências institucionais contra as mulheres", denunciam.

Ativistas

Uma das principais queixas dos movimentos sociais se refere à ausência de detalhamento no informe do governo sobre a situação de ativistas de direitos humanos. O documento, segundo eles, tem, num de seus títulos, referência a defensores/as de direitos humanos, mas no texto não há sequer uma anotação.

"Ou seja, é como se nos últimos três anos, coincidentemente aqueles nos quais o atual governo esteve à frente do Poder Executivo, nada houvesse a reportar a respeito da situação de defensores/as de direitos humanos", apontam.

"Na verdade, neste período, foram agravadas as situações que tornaram o ambiente de atuação da sociedade civil pior, no qual os espaços de participação e controle social foram fechados ou controlados", alertaram.

Pobreza e fome

O documento também se destaca por omitir qualquer tipo de avaliação sobre a dimensão da pobreza nos últimos anos. O informe se limita a trazer dados de quantas pessoas foram beneficiadas pelos programas do governo e dizer que, "em razão da continuidade de dificuldades oriundas da pandemia de COVID-19", os pacotes foram mantidos.

"Ressalta-se que em maio de 2021, o Programa Bolsa Família bateu recorde histórico de concessões, atendendo a 14,69 milhões de família contempladas. Com o fim do Auxílio Emergencial 2021 em outubro, os desafios da reconstrução no pós- pandemia exigiram uma resposta rápida do governo, para atenuar as perdas das famílias mais vulneráveis e promover a recuperação da economia não de forma pontual ou temporária, mas de forma estruturante, a fim de proteger as famílias e combater a pobreza e extrema pobreza", disse o governo, sem entrar em detalhes sobre a dimensão da crise e nem sobre o impacto da ajuda.

"Ao longo do tempo, o estado brasileiro tem encontrado graves dificuldades em garantir a redução da pobreza e combater as desigualdades da população vulnerável que vive no país. Porém, no último período esse quadro se agravou", alertaram as entidades da sociedade civil.

Para eles, houve um retrocesso, além de corte de orçamento e desinvestimento público, ações que dificultaram o acesso aos dados e o controle social, que agravaram o quadro geral de desigualdade de renda.

Os dados da fome no Brasil tampouco aparecem no informe apresentado pelo governo, fato que deixou as entidades da sociedade civil indignadas. "O Coletivo RPU apurou que a fome aumentou no último ano, juntamente com a inflação, que recaiu pesadamente sobre os alimentos, enquanto houve pouco ou nenhum esforço do governo para reverter esse quadro", alertaram.


Povos Indígenas

O governo ainda foi duramente atacado pelos movimentos sociais por conta de sua reação diante das cobranças colocadas pela comunidade internacional sobre a questão indígena. Há quatro anos, o país recebeu 34 recomendações que direta e indiretamente versavam sobre preocupações com a situação dos povos indígenas e do meio ambiente.

Elas "apontavam para a necessidade do Brasil avançar na promoção e no respeito aos direitos indígenas, continuar com a demarcação de terras indígenas, prevenção do racismo e discriminação, proteção de lideranças indígenas, obrigação de realizar consultas prévias, promoção da saúde indígena, mortalidade infantil, alimentação e saneamento nas aldeias e implementação da política climática e redução do desmatamento".

Hoje, segundo os movimentos, "não só tais recomendações não foram cumpridas como boa parte delas entrou em retrocesso no governo Bolsonaro, com a paralisação da demarcação dos territórios, a extinção dos colegiados de participação social, iniciativas legislativas para desfigurar os direitos constitucionais indígenas, afrouxamento da legislação ambiental e propagação de discursos racistas e preconceituosos contra os povos indígenas por autoridades governamentais".

No informe, o governo indica que "financiou a aquisição e a distribuição de mais de 400 mil cestas de alimentos para famílias indígenas e quilombolas entre os anos de 2020 e 2021". "Essa ação, voltada para famílias de minorias étnicas em situação de vulnerabilidade alimentar, assegurou alimentação adequada a crianças indígenas e quilombolas", disse.

A ação, em grande parte, apenas ocorreu depois de uma decisão Judicial que exigia do governo que tais medidas fossem realizadas.

O documento apresentado pelo governo, portanto, foi considerado como insuficiente pelos movimentos indígenas e sociedade civil. "Não enfrentando nenhuma das recomendações, o relatório que o governo levará a ONU traz a informação de que se promoveu um curso online sobre a "pauta indígena", distribuiu "mais de 400 mil cestas de alimentos para famílias indígenas e quilombolas" e priorizou povos indígenas na campanha tardia de vacinação da Covid-19", afirmaram as entidades.

"O desprezo com que o governo Bolsonaro tem tratado os povos indígenas e buscado abrir seus territórios à exploração predatória de recursos naturais fica, assim, escancarado nessas breves menções que apontam para a desestruturação da política indigenista e ambiental do país nos últimos anos, na contramão dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro", atacam as entidades.