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Jamil Chade

REPORTAGEM

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ONU: Brasil tem dever de investigar crimes contra indígenas sob Bolsonaro

Criança Yanomami no Hospital Infantil Santo Antônio, em Boa Vista, em janeiro de 2023 - Michael Dantas/AFP
Criança Yanomami no Hospital Infantil Santo Antônio, em Boa Vista, em janeiro de 2023 Imagem: Michael Dantas/AFP

Colunista do UOL

26/05/2023 04h00Atualizada em 15/08/2023 11h26

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A Justiça no Brasil tem a responsabilidade de investigar e punir os responsáveis pelos crimes cometidos contra indígenas e negros, nos últimos anos e durante a gestão do governo de Jair Bolsonaro.

A declaração é da sub-secretária-geral da ONU, Alice Wairimu Nderitu. Em entrevista exclusiva ao UOL, a responsável ainda das Nações Unidas pela Prevenção de Genocídio detalhou como foi sua missão ao Brasil, no início de maio, e reafirmou que:

genocídios são precedidos por discurso de ódio;

fortalecer a Funai é lutar contra crimes atrozes;

a impunidade da polícia é completamente inaceitável;

o crime no Brasil não pode ser lidado com execuções.

Em suas conclusões, ela destacou que existem fatores de risco para o genocídio no Brasil e que os ataques contra indígenas e negros se aceleraram sob o governo de Jair Bolsonaro (PL).

Sua posição reforça a tese de grupos indígenas e defensores de direitos humanos, que buscam um reconhecimento pelos crimes cometidos contra seus povos. O convite do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também teve como objetivo aumentar a pressão sobre os responsáveis pelo desmonte da política de direitos humanos nos últimos anos.

Apesar de reconhecer que as violações aumentaram nos últimos anos, a representante da ONU insistiu que os problemas são estruturais e que o racismo está "enraizado" na sociedade brasileira. Nderitu esteve nos territórios do povo yanomami, em terras indígenas em Mato Grosso do Sul e na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro.

A representante deixou claro que seu mandato não para determinar se uma política específica deve ser classificada como crime de genocídio. Mas explicou que sua função é a de alertar sobre a existência ou não de fatores de risco.

Alice Wairimu Nderitu, conselheira da ONU, que vistou o Brasil - Greg Ehlers - 20.fev.18/SFU - Greg Ehlers - 20.fev.18/SFU
Alice Wairimu Nderitu, conselheira da ONU, que vistou o Brasil
Imagem: Greg Ehlers - 20.fev.18/SFU

Eis os principais trechos da entrevista:

Por qual motivo a senhora queria ir ao Brasil?

Meu escritório tem monitorado a situação no Brasil por vários anos, com foco nas atrocidades contra os povos indígenas e outros grupos sob risco. Fui convidada agora pelo governo para fazer essa visita. Estive com representantes do alto escalão do governo, representantes da sociedade civil e todos os atores relevantes que têm um papel na proteção dos indígenas no Brasil e dos afrobrasileiros.

O seu escritório já havia tentado visitar o Brasil?

Meu predecessor no cargo já tinha estado no Brasil, numa universidade. Ele expressou seu interesse em fazer uma visita de alto escalão ao país. Mas a oportunidade não apareceu.

A situação dos yanomamis é dramática. Quais elementos a senhora identificou como risco de genocídio?

A questão yanomami está muito bem documentada e se trata de algo que existe por anos. No nosso monitoramento que fazemos do Brasil, nos últimos cinco anos, recebemos informes de violações cometidas contra esse povo. Quando visitei Roraima, tive contato direto com essas violações.

De acordo com a Constituição brasileira, os territórios indígenas são protegidos de mineração. Apesar disso, essas atividades causaram danos a essa população e conduzem a todas essas violações. Portanto, seus direitos de ter acesso à terra e educação, saúde têm sido impactado negativamente. A invasão da Terra Yanomami por garimpeiros tem resultado em mortes, inclusive em assassinatos de seus lideres, e defensores de direitos humanos e ambientalistas.

Estudos mostram a contaminação da terra e da água, com sério impacto na saúde e no abastecimento. Inclusive nas atividades de pesca. Há um aumento de malária e desnutrição. Também fui informada de violência sexual contra mulheres e meninas, além de outras formas de violência de gênero.

Mas a chave para falar do povo yanomami é que sua vida depende da floresta onde vivem. Dos rios e da biodiversidade. Isso é chave para suas vidas.

Portanto, a destruição da floresta para fins de mineração impôs condições contra essa população, que pode ser um ataque contra o povo yanomami.

Vimos o desmantelamento da Funai e das políticas ambientais nos últimos anos. Qual foi o impacto disso para o povo yanomami?

Quando estive no Brasil, estive com pessoas que trabalham na Funai e também as pessoas que são atendidas pela entidade. Ela deve assegurar serviços e proteção aos indígenas. Fundos foram retirados, o que limitou significativamente sua capacidade de fornecer serviços às comunidades indígenas mais vulneráveis.

O governo tem a responsabilidade de proteger essas populações. Portanto, cortar recursos e limitar a capacidade da Funai vai contra essa responsabilidade.

Peço ao governo que faça todos os esforços para que os serviços possam chegar a essas pessoas, inclusive para que trabalhem com instituições como a Funai. Isso é crucial. Meu escritório examina medidas para mitigar (os riscos de crimes), inclusive o compromisso do governo em proteger sua população. A Funai e sua existência — e garantir recursos - são medidas de mitigação do governo.

A senhora esteve também em Mato Grosso do Sul e destacou a pobreza do povo guarani-kaiowá. O que conduziu a tal situação nessa região? E como a senhora compara essa crise com o que ocorre no Território Yanomami?

Ambos povos estão sofrendo. E todos sofrem por conta de que suas terras. No Território Yanomami, houve uma operação de segurança. Enquanto eu estava lá, houve uma tentativa de atacar um dos líderes. E em minha presença. Eu vi o que era ser um yanomami. Não se pode nem sequer andar pela cidade.

Em Mato Grosso do Sul, sabemos que não houve demarcação e isso teve um impacto negativo para os indígenas. Sobre a pobreza, é algo que foi tão chocante ver a vida que esses brasileiros têm. Eles também são brasileiros. São indígenas brasileiros e, ainda assim, vivem em casas de papel e crianças que não vão para a escola.

O que me partiu o coração foi o número de suicídios de jovens, que não tem esperança e não veem o futuro.

Vi como muitos preservam suas histórias e sua luta. Sabemos que os apelos pela demarcação não foram atendidos plenamente. Por isso, moram na beira de estradas e vivem em péssimas condições. Em alguns casos, temos a resposta excessiva das forças de ordem, com mortes e prisões arbitrárias. O povo guarani-kaiowá não apenas vive na pobreza mas também em um medo constante.

O que o governo deve fazer imediatamente para lidar com todas essas situações?

Essa é uma questão de geração. Não existem atalhos. A situação precisa ser examinada e uma ação precisa ocorrer de forma correta. Conheci um casal em Mato Grosso Sul, o senhor, idoso, me deu um papel no qual ele falava sobre o que viveu e como lutou por suas terras por toda suas vidas. E ele me disse: na próxima vez que você vier, eu ja não estarei aqui. Pensei: ele passou sua vida inteira lutando e está me entregando isso.

O governo tem a primeira responsabilidade em dar uma resposta. Hoje, estou encorajada com o compromisso do governo brasileiro.Todos esses esforços tem como meta lidar com isso, de uma perspectiva estrutural e sistêmica.

No povo yanomami, as ações precisam ser mantidas. Em Mato Grosso do Sul, precisam demarcar terras. Peço às autoridades para investigar as violações contra indígenas, inclusive pelas forças policiais. A impunidade leva a novas violações.

Falando em impunidade, a senhora também visitou as comunidades no Rio de Janeiro. Quais são suas conclusões?

Ouvi deles testemunhos da violências. Estive com mães que perderam seus filhos para essa violência. E vi a tristeza em seus olhos. Quando falamos em execuções extrajudiciais, estamos falando que o sistema criminal não tem a capacidade de prender a pessoa envolvida e leva-la a uma corte. No lugar disso, temos essas mortes extrajudiciais.

Uma das mães que eu conheci me disse: "não conheço nenhuma política pública que lide com afrobrasileiros. Tudo o que eu conheço são balas".

A prisão de negros continua muito elevada. Eles são 70% dos detentos no Brasil. E é urgente investigar todos os casos de civis mortos nas mãos da policia. A impunidade da polícia é completamente inaceitável. O país não pode lidar com o crime por meio de execuções extrajudiciais, mas com o estado de direito e com o sistema criminal.

No Brasil, o discurso de ódio é tem sido um dos aspectos que mais preocupa defensores de direitos humanos. Como isso contribuiu para clima de violência que vivemos?

Muito. Não há um genocídio que não tenha sido precedido e acompanhado por um discurso de ódio, Sabemos o que o discurso de ódio faz. Ele transforma estereótipos em discriminação. Ele é o combustível para muitas coisas que conduzem sociedades a ficarem divididas. Ele é a fonte da divisão. O ódio se traduz em violência.

O discurso do ódio, em seu nível extremo, vira ataques sistemáticos contra a população sob risco. E que pode levar a um genocídio e crimes contra humanidade.

O atual governo do Brasil entende o perigo do discurso de ódio. Há um projeto no Congresso para lidar com isso. Ofereci meu apoio para lidar com esse fenômeno e o escritório da ONU também se ofereceu para ajudar a desenhar um plano para lidar com discurso do ódio.

O atual governo entende. Mas o anterior era um dos principais atores desse fenômeno. Bolsonaro deve ser responsabilizado?

Os problemas vem de antes dele. O discurso de ódio contra indígenas e afrobrasileiros vem de longe. Qualquer tentativa de lidar com isso deve ser considerado na perspectiva correta. Entretanto, algumas das politicas implementadas nos últimos cinco anos pioraram a situação dos povos sob risco, inclusive indígenas.

A senhora diz que não tem o poder de qualificar esses crimes e um eventual genocídio apenas pode ser declarado por um tribunal. Mas acha que o caso deve ser examinado pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia?

Eu não qualifico situações. Eu não tenho mandato para caracterizar a natureza de um crime. Só uma corte nacional ou internacional podem fazer isso. Primeiro, o Brasil tem responsabilidade de investigar os crimes que ocorreram no Brasil e tomar o primeiro passo. O Brasil ratificou os tratados sobre genocídio.

Em segundo lugar, deve ficar claro que o TPI é uma corte independente. O governo pode convidar a corte para iniciar investigações, por meio de mecanismo de complementariedade. Ou se procurador pode fazer se Brasil é incapaz de faze-lo. Mas a responsabilidade primeira é a do estado brasileiro.