Jamil Chade

Jamil Chade

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Reportagem

ONU resistiu em assumir responsabilidade, diz viúva de Vieira de Mello

A ONU resistiu em assumir suas responsabilidades diante da família brasileira de Sérgio Vieira de Mello. A declaração é de Carolina Larriera, economista da universidade de Nova York e viúva do brasileiro.

Há exatos 20 anos, uma bomba colocou fim à vida do brasileiro que, para muitos, caminhava para se tornar o secretário-geral da ONU. Em 19 de agosto de 2003, um caminhão com explosivos foi estacionado ao lado da sede do escritório das Nações Unidas em Bagdá, no Iraque.

Naquele momento, ele chefiava a missão. No total, 22 pessoas morreram e 150 outras foram feridas. O atentado, porém, abriu um novo capítulo na história da entidade.

Uma das sobreviventes foi Carolina, companheira de Vieira de Mello e que também trabalhava na missão da ONU no Iraque.

Em entrevista exclusiva ao UOL, ela conta os detalhes dos processos conduzidos nas últimas duas décadas na busca por ser reconhecida como sua parceira. Formada na Universidade de Harvard, Carolina não mede palavras para descrever o que viveu diante do organismo internacional.

Tinham nos alertado que, logo de cara, precisávamos saber que íamos lutar com uma mão amarrada nas costas contra um adversário que não era só maior que nós, mas que também não respeitava as regras
Carolina Larriera

Segundo ela, as famílias das vítimas jamais foram informadas sobre os resultados das investigações internas realizadas sobre o atentado.

Vieira de Mello, nas palavras do Itamaraty, "ingressou na ONU, em 1969, como funcionário do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e atuou em operações humanitárias e de manutenção de paz em diversos países". "No Camboja, coordenou a repatriação de 360 mil refugiados. Entre 1999 e 2002, Sérgio liderou a missão da ONU que acompanhou a transição do Timor Leste para a independência", disse.

"Dedicou sua vida a apoiar a reconstrução de comunidades afetadas por guerras e violências extremas, sempre atuando com independência e imparcialidade na negociação pacífica de conflitos e na defesa dos direitos humanos", completou o governo.

Continua após a publicidade

Leia os principais trechos da entrevista:

Na sua avaliação, a ONU assumiu suas responsabilidades de forma suficiente pelo que aconteceu há 20 anos?

A ONU, que tinha a responsabilidade, nunca as assumiu. Sobre nossa luta, o que tem de novo é que em novembro do ano passado, 19 anos mais tarde, forçamos a ONU, na Justiça, a reconhecer que, em todo esse tempo, tinha agido equivocadamente.

O Tribunal Interno de Apelações da ONU (Unat) tem me dado a razão: provei no seu maior tribunal interno que a ONU agiu de forma errada. No total, tivemos um processo no Brasil e cinco processos nos tribunais da ONU durante esses 20 anos. Trata-se de uma reivindicação moral muito importante. Só 2% dos processos resolvem em favor de pessoas como eu.

Você diz que a ONU agiu de forma errada. Sobre o quê?

Descobrimos que ela não respeitava sua própria lei. E, como há a questão de imunidade, não se pode processa-la fora de suas instituições.

Continua após a publicidade

E qual foi a decisão dos tribunais brasileiros que a ONU não reconhecia?

A decisão que há tempos confirma legalmente a nossa união civil. O Tribunal de Apelações da ONU acabou confirmando a lei brasileira e o meu status de viúva e família.

O que você descobriu durante esse processo?

A mais surpreendente descoberta foi que, nas Regras e Regulamentos da ONU, o direito dos funcionários "deve ser determinado em todos os casos com base no princípio há muito estabelecido por referência a lei da nacionalidade do funcionário em questão", "para assegurar o respeito pelos direitos sociais, diversidade religiosa e cultural dos Estados Membros e de seus nacionais". Essa é a base das regras da ONU.

Mas no caso do Sergio, que era brasileiro, apesar dessa regra elementar, durante 19 anos a ONU se recusou a reconhecer a lei brasileira. Assim, negou a família brasileira em favor de uma narrativa insustentável.

Em tempos de discussão de apropriações culturais, e no contexto da briga pela retidão moral da guerra do Iraque em 2003 entre França e EUA, ficamos estarrecidas com a descoberta.

Continua após a publicidade

Será que um europeu precisa batalhar 20 anos, como a Gilda e eu, no caso de Sergio? Ou que se tiver o respaldo de um poder tradicional, membro permanente do Conselho de Segurança, consiga que sua queixa seja ouvida em horas? Isso precisa mudar.

Durante esse período, como tem sido a reação da ONU sobre o caso? Existem documentos e informações que você ainda não pode ter acesso?

Não assumir responsabilidades tem tido consequências: entre outras, embaixadores de boa vontade, como a atriz Angelina Jolie, têm encerrado seus mandatos.

Nesses anos, junto com a minha sogra Dona Gilda, percorremos um longo percurso. Foi extraordinário observar como uma velhinha de 86 anos e uma jovem mulher sobrevivente de um atentado terrorista viraram ameaça só pelo fato de insistirem com perguntas legítimas sobre o pior atentado em mais de 75 anos de história da ONU.

Lembre-se que eu fui diplomata da ONU por quase uma década. Anos antes, troquei uma carreira promissora como economista pelo chamado mais elevado de trazer inclusão econômica para os sem privilégio. Troquei o conforto da cidade - eu morava em Nova York - por zonas de conflito.

Primeiro, no Timor Leste. Lá, apoiei as viúvas privadas de seus meios de subsistência por conflitos violentos. Ajudei a organizar duas eleições, na redação de uma constituição nacional e a criar um banco central. Emitimos os primeiros passaportes nacionais. No Iraque, planejei a conferência de desenvolvimento da ONU no Iraque em outubro de 2003 para garantir o apoio internacional após 30 anos de ditadura de Saddam Hussein.

Continua após a publicidade

Desde cedo, a ONU colocou várias desculpas para não oferecer respostas - nem como sobrevivente nem como família. Primeiro, argumentou que não era família - então a minha sogra Dona Gilda somou-se. Mas junto comigo, a mãe do Sergio foi ignorada. Ali, começamos um processo judicial para que eu fosse reconhecida como viúva. No caminho, dados surpreendentes foram revelados.

Eu acabei virando uma advocate, uma defensora do direito a aceso a informação.

Houve uma investigação interna na entidade sobre como aquilo ocorreu?

Percorrer esse caminho não foi fácil. Tinham nos alertado que, logo de cara, precisávamos saber que íamos lutar com uma mão amarrada nas costas contra um adversário que não era só maior que nos, mas que também não respeitava as regras. Mas nós aprendemos muito no caminho. Nos encontramos também com pessoas maravilhosas ao longo dele, comprometidas com a causa de preservar a verdade.

O nosso trabalho acabou virando uma causa. Muitos se somaram a ela. Acabamos organizando uma rede formidável de voluntários: expertos em direito, brasileiros e profissionais de vários países, buscando soluções novas e de ponta.

Vale a pena lembrar que organizações como a ONU tem imunidade diplomática e não respondem a tribunais nacionais. Então nós tivemos que enfrentar a organização no seu tribunal interno, onde ela atua tanto como juiz como como parte.

Continua após a publicidade

Por que isso é importante?

Porque o Brasil envia tropas a ONU. Num eventual atentado contra soldados brasileiros ao serviço da ONU - será que a ONU vai respeitar a lei brasileira? Ou vai se limitar a acatar a lei dos poderes tradicionais como EUA e a França, se for do interesse dessas potências, como fiz durante quase 20 anos no caso do Sergio?

O meu caso vira um precedente importantíssimo: a ONU está obrigada a respeitar a lei brasileira, se a pessoa for de nacionalidade brasileira, de acordo com a própria normativa interna da ONU, vigente desde 1945.

O Brasil tem enviado tropas do Exército e policiais militares dos estados brasileiros ao Unef (Suez), Unavem (Angola), Unprofor (Bósnia) e outros lugares; mais de 37,3 mil militares brasileiros estiveram no Haiti (Minustah). Desde 2015 Brasil comanda militares em Monuco, no Congo. Também existe um Centro de Treinamento de Capacetes Azuis no Rio. E terá ainda mais no futuro, inspirados pelo Sergio.

20 anos depois do atentado terrorista, o que se sabe exatamente sobre o motivo e o autor?

Familiares e sobreviventes nunca fomos informados de nada.

Continua após a publicidade

O que dizia Sergio sobre a presença da ONU no Iraque? Por qual motivo ele aceitou assumir a tarefa?

Sérgio e eu não concordamos com a guerra do Iraque, mas na época acreditávamos e vivemos a missão da ONU todos os dias e nos sentimos fiéis aos valores aos quais havíamos dedicado nossas carreiras. Estávamos preocupados com o que aconteceria com os civis na Bagdá ocupada quando a operação militar terminasse.

Há uma visita que ficou famosa, dele ao presidente Bush. O que ele contou após aquele episódio?

Ele não só me contou. Ele me deu para guardar a taquigrafia, o que eu fiz e tenho até hoje, para garantir que a reunião não fosse tirada do contexto do alto comissariado de direitos humanos. Lembre-se que Sergio acabava de alertar a Marilia Gabriela na TV que estava com receio de "cair numa cilada".

Como foi o comportamento do governo brasileiro naquele momento? Eles poderiam ter feito mais para ajudar na investigação ou pressionar por uma responsabilização maior da entidade?

Que eu a minha sogra saibamos, o governo daquele momento não cobrou respostas.

Continua após a publicidade

Aquela bomba interrompeu também projetos pessoais entre vocês dois. Como foi lidar com essa perda?

Dediquei a minha vida à procura da verdade.

Como você gostaria que uma nova geração de estudantes e brasileiros conhecesse Sergio? Qual foi seu legado para o mundo e para a ONU?

O Centro Sergio Vieira de Mello, fundada pela mãe de Sergio, dona Gilda Vieira de Mello, e eu, inspira as novas gerações de jovens - nesses 20 anos, o curso de Relações Internacionais tem se multiplicado exponencialmente. Jovens sonham com seguir o caminho no mundo internacional. Valores como a defesa da verdade até o final e dignidade humana, são princípios inspirados na nossa história, mais atuais do que nunca.

Para as duas décadas, o Centro Sergio Vieira de Mello oferece no 19 de Agosto uma conferência internacional, com todos que nos apoiaram esses anos: desde o primeiro fiscal do Tribunal Penal Internacional Luis Moreno Ocampo, até o atual presidente de Timor-Leste, Prêmio Nobel Ramos-Horta. O ministro Mauro Vieira e o deputado Eduardo Suplicy também irão discursar.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes