Governo Lula propõe recorrer à Corte Internacional em disputa sobre greve
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva desfaz uma instrução dada pela gestão de Jair Bolsonaro e decide propor recorrer à Corte Internacional de Justiça. No centro da disputa está a insistência de trabalhadores sobre a necessidade de que haja uma definição jurídica do direito à greve, posição que é contestada por empresários.
Em documentos diplomáticos obtidos com exclusividade pela newsletter The Geneva Observer e também publicado pelo UOL, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, assina uma carta na qual pede que, "de forma urgente", o caso da ação no tribunal seja incluído na agenda de debates.
A Corte Internacional de Justiça tem sua sede em Haia. Mas não deve ser confundida com o Tribunal Penal Internacional, que fica na mesma cidade. Ambas, porém, representam esforços de garantir que a ordem internacional esteja baseada em regras válidas para todos.
Para observadores, a decisão do governo Lula revela que existe uma aposta no sistema de tribunais e do direito internacional.
"Muitas tentativas foram feitas para superar a disputa de anos, inclusive por meio de um diálogo social", escreveu Marinho, numa carta de 13 de junho. "Apesar desses esforços, um resultado de consenso não foi obtido", lamentou. Por essa razão, ele apoia a ideia de que a disputa seja "colocada diante da Corte Internacional de Justiça".
"Entendemos que, sem uma certeza legal, essa disputa continuará a ter um impacto danoso para o sistema de supervisão, a credibilidade da OIT e implementação de padrões trabalhistas", escreveu.
O debate já estava em andamento nos últimos anos. Mas, por decisão da chancelaria bolsonarista, o Brasil optou por não se aliar ao grupo que solicitava recorrer a um tribunal internacional.
Agora, sob Lula, a instrução foi a de se aliar no pedido para que o caso chegue até Haia. Assim, com o apoio de 34 governos, uma solicitação do Grupo de Trabalhadores da Organização para recorrer à Corte Internacional de Justiça para decidir sobre o direito de greve foi enviada ao Diretor-Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Gilbert Houngbo.
Na solicitação conjunta, governos e trabalhadores apontam que, cem anos após um primeiro pedido de recursos a uma corte internacional, a OIT "não deve hesitar em depositar mais uma vez sua confiança na Corte Mundial".
Há décadas, o direito de greve tem sido uma das questões mais controversas na OIT, cuja governança tripartite de governos, trabalhadores e empregadores é única no sistema da ONU.
Após anos de tentativas infrutíferas de resolver a questão internamente, os governos que apóiam o grupo dos trabalhadores estão agora determinados a pôr um fim definitivo à disputa e resolver a questão de uma vez por todas perante à Corte Internacional, o mais alto tribunal da ONU.
Os governos que solicitaram a ação temem que, sem clareza jurídica, a cisão de longa data acabe com a credibilidade da OIT e afete negativamente sua capacidade de implementar normas trabalhistas, reduzindo de fato a relevância e a influência do órgão trabalhista da ONU. Um parecer consultivo da CIJ sobre a questão seria obrigatório para todos os Estados Membros da OIT.
A discórdia que há muito tempo se arrasta explodiu com uma carta enviada em 31 de agosto de 2023 pelo Diretor-Geral da OIT, Gilbert Houngbo, a todos os Estados membros da organização, informando-os de sua decisão de convocar uma reunião especial do Conselho de Administração durante sua 349ª sessão, prevista para ser aberta em 30 de outubro. Na ocasião, seria debatido um possível encaminhamento à Corte.
Em trocas diplomáticas e comunicações obtidas pelo The Geneva Observer, os governos que pedem um encaminhamento urgente à Corte Internacional de Justiça da ONU — Argentina, Barbados, Brasil, Islândia, Noruega, África do Sul e UE — enfatizam que "após mais de uma década de tentativas fracassadas de encontrar uma solução, ter clareza jurídica tornou-se uma questão de urgência".
Eles lembram que as repetidas tentativas diálogo social não conseguiram superar a disputa. A solicitação sem precedentes de encaminhar a disputa à Corte provocou previsivelmente a ira do grupo dos empregadores, deixando a liderança da OIT abalada por novos conflitos em um momento em que já enfrenta alguns desafios urgentes.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
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A questão jurídica altamente complexa gira em torno da interpretação da Convenção 87 da OIT, um texto fundamental que garante a liberdade de associação e a proteção do direito de organização.
Desde a sua adoção em 1948, o Comitê de Peritos na Aplicação de Convenções e Recomendações da OIT, um órgão independente e altamente respeitado de especialistas jurídicos, tem considerado que o direito de greve é o corolário lógico da Convenção 87 e decorre dela, embora o texto não faça referência direta a ele.
A interpretação foi integrada às jurisdições internacionais e nacionais. A liberdade de associação também está incluída na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e o direito de greve é explicitamente mencionado no artigo 8 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.
A partir do final dos anos 80, encorajados pela revolução neoliberal da era Reagan-Thatcher, os empregadores questionaram cada vez mais essa visão, desafiando a posição do órgão supervisor de interpretar as convenções da OIT.
A tensão eclodiu em um grande confronto durante a Conferência Internacional do Trabalho de 2012, interrompendo o processo. Arquivos revelam que a Confederação Sindical Internacional acusou os empregadores de "tentar minar um dos mecanismos de direitos humanos mais eficazes do sistema de direitos humanos".
"A OIT", afirmaram os empregadores, "estava enfrentando uma crise multifacetada". O confronto testou severamente a relação de confiança entre os parceiros. Para muitos observadores da OIT, ela nunca foi reconstruída.
Um documento de referência da OIT sobre a disputa lembra aos seus Estados-Membros que "a ausência de qualquer referência ao direito de greve é o modus vivendi que prevaleceu até o momento", aparentemente indicando a alta sensibilidade e a natureza antagônica da questão.
Empregadores x OIT
Várias fontes apontam sinais do relacionamento tenso entre empregadores e trabalhadores, referindo-se à recente acusação dos empregadores de falta de "neutralidade e objetividade" por parte da OIT no que eles consideram uma tentativa coordenada com os trabalhadores de contornar vários requisitos processuais necessários para colocar um item na agenda do Conselho de Administração.
Por sua vez, o grupo dos Trabalhadores insiste que, apesar dos vários esforços dos constituintes tripartites ao longo de muitos anos para resolver a questão por meio do diálogo social, nenhum resultado negociado foi possível e não há razão para acreditar que o diálogo social adicional irá ou poderá romper o impasse.
Fontes descrevem a situação atual entre os parceiros como "confusa" e "muito tensa".
Todas as partes têm até 6 de outubro para enviar seus comentários ao diretor-geral da OIT.
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