Jamil Chade

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Em corte internacional, Brasil pede 'desculpas' e reconhece violações

Nesta semana, o Brasil foi levado ao banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos, acusado em dois casos de assassinatos de trabalhadores rurais. Em San José da Costa Rica, a corte regional se reúne para julgar as denúncias que, segundo observadores internacionais, revelam a violência no país pelo acesso à terra. Mas, num gesto histórico, o estado brasileiro optou por reconhecer as violações e pedir desculpas às vítimas. Para entidades de direitos humanos, o gesto é importante. Mas não basta.

O tribunal examina o caso do assassinato do trabalhador rural Manoel Luiz da Silva, morto há 27 anos. Ele foi baleado em 19 de maio de 1997, em São Miguel de Taipu, na Paraíba, quando passava por uma estrada, ao lado de outros três trabalhadores rurais. Os acusados foram os seguranças particulares do proprietário da Fazenda Engenho Itaipu, Alcides Vieira de Azevedo.

A vítima era do MST e tinha 40 anos. Manoel deixou a esposa, Edileuza Adelino de Lima, grávida de dois meses, e um filho de quatro anos, Manoel Adelino.

A investigação, porém, foi marcada por falhas e demora. Segundo as entidades que denunciam o caso, isso "viola o direito à integridade psíquica e moral dos familiares da vítima, além dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, conforme determina a Convenção Americana sobre Direitos Humanos".

Ao tomar a palavra nesta quinta-feira, o estado brasileiro tomou uma decisão rara na participação do país nos tribunais internacionais.

As autoridades nacionais reconheceram que o estado violou direitos e garantias na condução do processo penal relativo à morte de trabalhador rural na Paraíba. Em nome do Estado brasileiro, representantes da AGU (Advocacia-Geral da União) pediram desculpas aos familiares da vítima durante audiência.

"O Estado brasileiro reconheceu a violação às garantias judiciais e à proteção judicial da vítima e seus familiares, visto que, embora o caso tenha ocorrido em 1997, o julgamento final dos dois acusados pelo assassinato somente se deu em novembro de 2013, tempo incompatível com uma duração razoável do processo", afirmam.

A AGU também admitiu ter ocorrido desrespeito à integridade física, psíquica e moral dos familiares de Manoel, pois a "falha no bom andamento" da ação penal no Poder Judiciário resultou em "grave sofrimento" nos 16 anos de tramitação da ação, segundo a Advocacia-Geral da União.

"O Estado brasileiro, assim, reafirma sua plena disposição em honrar os compromissos assumidos internacionalmente quanto à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos", afirmou a representante da AGU, a advogada da União Taiz Marrão, da Procuradoria Nacional de Assuntos Internacionais.

Na declaração, o Estado brasileiro também reconhece sua responsabilidade internacional por ofensa ao artigo 5.1 do Pacto de San José, segundo o qual toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

"De fato, a perda de um ente querido, somada à espera alargada por uma resposta estatal, constitui inelutável violação da integridade psíquica e moral dos familiares do senhor Manoel Luiz da Silva", constatam.

"Em razão disso, considerando-se a natureza jurídica própria de que se revestem as medidas de reparação por violações dos Estados ao Direito Internacional, o Estado brasileiro manifesta publicamente seu pedido de desculpas aos familiares do senhor Manoel Luiz da Silva", declarou a representante.

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Segundo a versão do estado, em 19 de maio de 1997, Manoel e outros trabalhadores acampados na fazenda "Amarelo", no Estado da Paraíba, dirigiram-se a uma mercearia com o objetivo de comprar querosene. No entanto, ao retornarem ao acampamento utilizando um caminho que cortava a fazenda "Engenho Itaipu", no município de São Miguel de Taipu (PB), os trabalhadores foram agredidos por empregados fortemente armados da propriedade, tendo sido deflagrado tiro de espingarda calibre 12 que vitimou fatalmente Manoel.

Na sexta-feira, a mesma Corte julga a denúncia por omissão e falta de responsabilização do Estado no caso do desaparecimento forçado, em 2002, de Almir Muniz da Silva, trabalhador rural e defensor dos direitos dos trabalhadores rurais.

Ambos ocorreram no estado da Paraíba e foram denunciados pela Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra da Paraíba e a Dignitatis, além da Associação dos Trabalhadores Rurais do Assentamento Almir Muniz, no caso do defensor de direitos humanos.

Só o primeiro passo

Para as entidades que representam as vítimas, o reconhecimento de violações pelo Estado Brasileiro é "importante, mas somente um primeiro passo".

Em nota, a Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 e a Dignitatis "saúdam a decisão do Estado Brasileiro de, enfim, reconhecer parcialmente sua responsabilidade internacional pela investigação ineficaz e pela demora excessiva do processo penal que apurou a morte" do trabalhador rural.

Mas as entidades "lamentam que sua formalização tenha ocorrido apenas diante de uma Corte Internacional, e que não tenha sido acompanhada de uma delimitação precisa sobre os efeitos e limites do reconhecimento".

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"As organizações questionam a decisão do Estado brasileiro de reconhecer as violações apenas na audiência na Corte Interamericana, quando poderia tê-lo feito antes, impedindo que se abrisse um espaço de diálogo real com as vítimas e suas representantes quanto aos limites desse reconhecimento, bem como sobre as medidas de não repetição", dizem. "Isso evitaria, por exemplo, a continuação das violações decorrentes do próprio depoimento de uma das vítimas, gerando mais constrangimentos desnecessários", explicam.

As organizações apresentaram mais de vinte indicações de medidas de reparação e de não repetição para dar conta das lacunas estruturais que levaram aos fatos. "No entanto, o reconhecimento do Estado foi silente com relação a quais dessas medidas concretas serão implementadas", constatam.

As entidades ainda cobram do estado que se sobre as demais violações apontadas: direito à verdade e sua relação com a violência aos trabalhadores e trabalhadoras rurais; impactos na vida familiar durante as décadas que se passaram desde os fatos; e a necessidade de empreender modificações legislativa

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